Recentemente o Brasil ficou dividido com a notícia da camisa vermelha da Seleção. Mas isso é só a ponta de um iceberg que sempre acompanhou a história do país
Por Gianluca Pierro, Matheus Dias, Leonardo Trimboli, Rafael Raluy e Luara Pauly
“Eu não visto mais (camisa da Seleção brasileira). Não quero ser vinculado a um extremista, não quero ser confundido com um extremista na rua. Gostaria muito de usar, mas hoje não usaria”, foi o que disse o jornalista Allan de Abreu ao ser provocado pela Agenzia. Ele é autor de “As extravagâncias sem fim da CBF”, reportagem publicada na revista Piauí que rodou o Brasil nos últimos meses sobre as crises que a federação passa.
A fala de Allan não é um caso isolado e representa uma grande parte da opinião e do sentimento do povo. A camisa é muito mais do que apenas uma vestimenta do dia-dia. Hoje ela representa um lado da política brasileira e dessa forma, explicando basicamente, não representa o outro lado.
Disputa pela camisa
Com a virada do século, o Brasil vivia períodos conturbados politicamente. Quatro governos de esquerda consecutivamente fizeram com que movimentos de direita crescessem. O movimento “Cansei” em 2007, “Não vai ter Copa” em 2014, manifestações pelo impeachment da Dilma Rousseff (PT) são alguns exemplos do caos político que o País vivia.
Jair Bolsonaro ganhou notoriedade a partir de 2011 ao participar de programas de TV com discurso de ódio, aproveitou as manifestações de rua da direita para fazer capital político com discurso populista contra ‘tudo isso que tá aí’”, explica o mestre em comunicação Marcelo Alves de Resende. “O bolsonarismo aproveitou as manifestações de rua para se apropriar dos símbolos nacionais, como a bandeira do Brasil e a camisa verde e amarela da Seleção brasileira. Obteve êxito com a ajuda midiática, que acompanhava as manifestações de rua a partir de 2015, destacando o ‘caráter familiar’ de quem ia para as ruas. No discurso bolsonarista, só quem veste verde e amarelo seriam os verdadeiros cidadãos brasileiros.” É o que afirma Marcelo em sua pesquisa para dissertação de mestrado na UERJ.
A ressignificação da “amarelinha” não agradou nenhum pouco a esquerda que, primeiramente, buscou se afastar da camisa, não usando até em épocas de Copa ou vestindo apenas com adereços da esquerda.
“Em março de 2022, Lula afirmou que ‘a blusa e a bandeira não são desse fascista’, numa clara alusão a Bolsonaro e uma reivindicação para que os seus apoiadores usassem o verde e amarelo”, disse o jornalista.

Homem com a camisa do Brasil escrito “Não sou bolsominion” durante a parada SP. Foto: Marcelo Resende/Acervo pessoal
Diversos casos nos últimos anos exemplificam a rusga e a disputa política da camisa. “Em janeiro 2023, apoiadores de Bolsonaro depredaram Brasília com verde e amarelo. A Parada LGBTQIAPN+ de São Paulo convidou os seus frequentadores a irem ao evento de 2024, de verde e amarelo, simbolizando uma retomada dos símbolos nacionais. Agora, em 2025, apoiadores de Bolsonaro fizeram eventos em apoio ao líder ainda de verde e amarelo”, exemplificou Marcelo.
Em 2022, a CBF fez uma campanha da nova camisa para a Copa do Mundo buscando se desvincular da política. O anúncio contou com artistas como Djonga, rapper assumidamente contrário ao bolsonarismo, e com as frases “É coletivo. Representa mais de 210 milhões de brasileiros. Dentro e fora de campo”.
A camisa vermelha
O episódio mais recente dessa disputa foi a notícia da nova camisa da Seleção brasileira vermelha. A primeira informação foi a de que o Brasil não teria mais as cores da bandeira na sua segunda camisa de 2026. Tal fato evidencia o caos político e administrativo que vive a CBF e a Seleção. Nos últimos anos, o time do Brasil colecionou diversos vexames, entre eles o famoso 7 a 1 sofrido para a Alemanha na Copa do Mundo de 2014 no nosso País, substituindo o “Maracanazo” em 1950, como o nosso maior fracasso em Copas do Mundo.
Outras eliminações e derrotas marcantes, como a eliminação para a França em 2006 manchada pela icônica falha do lateral esquerdo Roberto Carlos que estava ajeitando o meião e esqueceu de acompanhar a marcação do Thierry Henry. Ou também, em 2021, quando Brasil perdeu a decisão da Copa América para seu maior rival, a Argentina, novamente em casa. Em um caso mais recente, no dia 25 de março desse ano, o time brasileiro foi derrotado por 4 a 1, de novo pela equipe argentina.
Porém, os vexames não só são nas quatro linhas. Um caso que evidencia a bagunça e desorganização política brasileira do futebol é o afastamento do dirigente esportivo Rogério Caboclo. O ex-presidente foi acusado de assédio moral e sexual a uma colaboradora da CBF. De acordo com a reportagem publicada pelo jornal GE, Caboclo desembolsou R$ 100 mil para não ser denunciado, porém, a tática não deu muito certo, já que o seu mandato como presidente da federação terminou.
Porém, Rogério não foi o único. O ex-presidente da CBF Ricardo Teixeira colecionou escândalos durante seus 23 anos de comando do futebol brasileiro. De acordo com a notícia publicada pela CNN, por conta de diversas denúncias de ilegalidades, a Federação Internacional de Futebol Associação (FIFA) excluiu-o permanentemente do futebol.
O jogo político que corre pela CBF está cada vez mais manchando a imagem do País. A reeleição do atual presidente Ednaldo Rodrigues – que agora já até foi afastado do cargo de presidência – por unanimidade representa que o principal País do futebol está passando por uma crise que já dura décadas.
Devido às crises, tanto dentro de campo quanto fora, a CBF decidiu que iria trocar as cores da camisa da Seleção brasileira para a Copa do Mundo de 2026 disputada no México, Canadá e Estados Unidos da América. Substituindo a cor azul da segunda camiseta, marcada pela primeira conquista mundial do País em 1958 contra a Suécia.
O anúncio possibilitou observarmos a disputa política que acompanha o futebol e a camisa da Seleção. Alguns dizem que a camisa vermelha não representa o País já que não está nas cores da bandeira. Outros dizem que a cor é um símbolo nacional, pois relembra a origem do nome do País fazendo referência histórica a Árvore do Pau-Brasil, conhecida por disponibilizar uma tinta vermelha. A discussão se estende à fornecedora Nike, já que é consenso na sociedade brasileira de que a marca propôs a mudança apenas para vender mais camisas. Agora eles teriam, duas camisas representando cada lado da política brasileira.
O jornalista Allan de Abreu conta que a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) se sente incomodada com a associação política da camisa. “Não é interessante ter o seu principal produto, que é a camisa da Seleção brasileira, vinculado a uma ideologia política. Nos setores de marketing, há um incômodo e eles já até tentaram fazer campanha publicitaria, mas eles mesmos admitem que não é simples de se resolver”. Portanto é possível entender que a sociedade brasileira esteja certa e a marca tenha feito isso, apenas para vender mais camisas. Já que a campanha com o Djonga não parece ter surtido muito efeito.
Apesar de a CBF já ter emitido uma nota desmentindo essa história e o novo presidente da CBF, Samir Xaud, também ter se pronunciado sobre a possiblidade da camisa vermelha dizendo “camisa brasileira é verde e amarela”, o caso nos ajuda a entender toda a briga política que o País vive há mais de um século.
Vale lembrar, que as cores da camisa da Seleção brasileira já mudaram na nossa história. Até 1950, o Brasil utilizava branco nos uniformes, quando perdeu a final da Copa do Mundo para o Uruguai e resolveu por trocar a cor pela famosa mundialmente amarela, o que nos rendeu o apelido de “amarelinha”.
Outro fator importante para o estranhamento da mudança é que em raras exceções, o Brasil joga com outro uniforme, a não ser o amarelo e o azul, como no caso de antirracismo do Vinícius Junior. Com a Seleção usando o preto do uniforme de goleiros como uniforme principal no primeiro tempo do jogo da Seleção contra a Guiné. Camisa que ainda contou com um patch com o lema “Com racismo não tem jogo”.
O futebol como ferramenta política
Sabendo do poder que o esporte tem, diversos governos, ao longo da história do País buscaram utilizá-lo, como a ditadura de Getúlio Vargas na década de 1930. “Vargas assumiu um País segregado pelas identidades regionais e queria unificar o Brasil para consolidar e legitimar seu poder, já que não foi democraticamente eleito”, explica Ana Klaudia Buzatto, professora de história na UFRGS. “A participação do Brasil na Copa de 1938 foi usada para projetar uma imagem de um País moderno e unido, era uma forma de gerar orgulho no povo e reforçar a ideia de que o Brasil estava no caminho certo”.
A ditadura militar também buscou se utilizar do futebol para a propaganda daquele governo. O golpe aconteceu em 1964 e naquele momento a Seleção vivia seu auge, vindo de um bicampeonato mundial em 1958 e 1962. Apesar disso, a Copa de 1966 não foi como os militares imaginavam, já que o Brasil foi eliminado ainda na primeira fase do torneio. Para a próxima Copa, os militares sabiam que teriam que se organizar melhor para evitar outro vexame. “Com militares dentro da delegação brasileira, o time foi treinado com um planejamento inovador na época especialmente para o clima do México, atentando-se aos âmbitos físicos e psicológicos”.
A estratégia parece ter dado certo e o Brasil foi campeão mundial pela terceira vez em sua história. Com a vitória, a Seleção foi vitrine para a ditadura militar. “A imagem de Medici foi amplamente promovida durante a Copa de 70: o presidente foi exibido como grande fã de futebol e o maior torcedor da Seleção”, finaliza a historiadora.
Propagandas ufanistas, símbolos daquele governo, como a icônica frase “Brasil: ame-o ou deixe-o” ou “Ninguém mais segura este País”, também eram usadas no contexto futebolístico. É o que conta o historiador Eduardo Gomes: “Noventa milhões em ação, para a frente Brasil, salve a Seleção (Música em apoio a Seleção), ou seja, a Seleção é o símbolo do Brasil e se você não está concordando com esse País, você não está concordando com a Seleção. Era uma propaganda nacionalista que não deixava de ser uma propaganda autoritária”.
Todos esses exemplos nos mostram como a estratégia de usar o futebol ao favor de governos autoritários sempre foi uma tática muito bem-sucedida. Não só no Brasil, mas também em vários outros lugares ao redor do mundo e da história. Casos da Argentina na década de 1970, Chile com o Pinochet e dezenas de outras.
Portanto é de se imaginar que o Bolsonaro iria se aproveitar dessa tática para benefício de seu governo. Era comum vermos o presidente em estádios de futebol todos os finais de semana, sempre acompanhado de uma camisa de um time brasileiro. Todos esses fatores passam a imagem de um homem simples. “Bolsonaro sempre exaltou ditaduras, logo, é fácil que ele usará as mesmas táticas da extrema-direita, muda a figura, mas as táticas golpistas são as mesmas, como o nacionalismo exacerbado e o tradicionalismo com um culto a um fictício passado glorioso”. Completou Marcelo.
O medo atual
Quem gosta e acompanha futebol e tem o seu time do coração, sabe que não pode “dar mole” e vestir a camisa do seu clube em qualquer ambiente e em qualquer data, principalmente numa cidade desigual e violenta como São Paulo, onde se têm quatro clubes com torcidas gigantescas: Palmeiras, São Paulo, Santos e Corinthians.
Mas agora, o torcedor não só tem que se preocupar com a camisa do seu time como tem que se atentar a do seu País. Andar de metrô com a “amarelinha” pode não ser uma boa ideia. Recentemente, torcedores corinthianos impediram bolsonaristas, trajados de verde amarelo, de entrarem no metrô depois de um ato na Avenida Paulista. Nada além disso ocorreu, mas o pavio estava aceso.

Manifestação na Avenida Paulista de apoiadores do Bolsonaro usando camisas do Brasil. Foto: Amanda Vilor/Acervo Pessoal
O estudante de Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP) André Sanches disse que pensa melhor antes de sair na rua com a camiseta da Seleção. “Não me sinto confortável vestindo a camisa no dia-dia, indo no cinema, por exemplo. Não sou Bolsonarista e não gostaria de ser lido dessa forma”.
A Seleção e o seu principal símbolo, a camisa, que deveriam representar e ser motivo de orgulho do povo brasileiro, hoje ilustram a desunião e polarização que o País vive. O futebol é reflexo da sociedade, portanto, entender o que acontece no mundo da bola é também, compreender o que acontece em outros campos.
Agora só nos resta esperar os próximos episódios e vivenciar o ano de 2026, em que teremos Copa do Mundo e eleições presidências.