Por onde você olha, existem referências a doramas, grupos de k-pop e à culinária oriental. Resultado de uma grande imigração asiática, a tradição oriental refletiu fortemente na cultura brasileira.
Por Ana Beatriz Siqueira Utrini, Ana Clara Filtsoff de Oliveira, Ana Paula Teixeira da Silva, Marta Rayza Dutra dos Santos e Yuri Coelho Hoffman
Tão distante, mas tão perto: milhares de fãs brasileiros admiram produções culturais vindas dos países da Ásia
Por que a cultura asiática é tão forte no Brasil? Se você gosta de cultura pop, certamente já teve contato com produções asiáticas. Sucesso mundial, os animes, doramas e a música oriental são amados por milhares de brasileiros e é possível ver fãs de várias idades em todo o País. Donos de grande audiência na TV e plataformas de streaming, engana-se quem pensa que todo o estouro se iniciou “ontem”.
Com a chegada dos animes ao Brasil no fim dos anos 1990, crianças e adolescentes já se encantavam com animações como Os Cavaleiros do Zodíaco e Dragon Ball Z. Os animes – animações baseadas em mangás – e as histórias em quadrinhos japonesas ganharam o amor dos brasileiros a partir da década de 1990, quando passaram a ser transmitidos na TV aberta dentro dos horários destinados à programação infantil. Tudo começou com o sucesso Os Cavaleiros do Zodíaco. A animação conta a luta de jovens guerreiros, cada um com sua armadura guardada por uma constelação diferente, para proteger a reencarnação da deusa grega Atena, “não importa quantas vezes eu morra, como a Fênix, eu renasço das cinzas”. Depois disso, também na década de 1990, foram trazidos ao país os famosos Sailor Moon (em 1992), Yu Yu Hakusho (em 1997) e Dragon Ball Z (em 1999). Os contextos dos animes normalmente giram em torno de guerras que protegem algo ou alguém.
Uma curiosidade daquela década é que a fama dos animes trouxe o aumento do colecionismo. Muitos brindes vinham com produtos alimentícios, como os famosos Tazos, que faziam com que os fãs comprassem salgadinhos para ganharem o item e completarem suas coleções.
Em 2020, quando o mundo enfrentou a pandemia da Covid-19, houve o segundo boom dos animes no Brasil. Surgiram então as plataformas de streaming feitas para os fãs das animações, como o Crunchyroll, que conta com mais de mil animes no catálogo. A criação desse tipo de streaming foi ideal para o fã em quarentena assistir ao seu desenho favorito no momento desejado.
Movidos por essa paixão, muitos fãs passaram a utilizar as imagens dos personagens favoritos como fantasias. Atualmente, existem concursos e competições que premiam os melhores ‘cosplayers’, como o campeonato World Cosplay Summit. Em 2006, os irmãos brasileiros Mônica e Maurício Somenzari Leite Olivas receberam o título de melhores cosplayers no campeonato mundial da modalidade.
Doramas e o Soft Power
Esse mundo oriental também está presente na TV, ao abrir uma plataforma de streaming, com certeza você encontrará um K-drama entre os títulos mais assistidos. As novelas, geralmente de origem coreana, trazem em suas histórias o aspecto leve ao abordar temas em torno de relações interpessoais, como amizades e romances, além de narrativas de bullying e superações.
Fã das histórias, Claudineia Gonçalves, de 38 anos, explica o motivo pelo qual adora assistir a um dorama: “Acho muito fofo como tudo acontece bem devagar e como os homens agem, os casais são muito bonitinhos, é muito diferente das séries americanas”.
Assim como a Claudineia, milhares de pessoas também acompanham os doramas. É isso que tem feito a audiência crescer de forma consistente nos últimos anos. Algumas plataformas de streaming tiveram maior alcance graças às novelas orientais. A Netflix, por exemplo, bateu um recorde de 18,9 milhões de assinantes no último trimestre de 2024 e conta com mais de 50 novelas coreanas originais no catálogo. “Vou começar a pagar uma plataforma só porque vi que tem um dorama que estou louca para assistir”, confidencia Claudineia.
As tramas, em grande parte construídas para o público jovem, são histórias conhecidas como romances “slow burn” (uma espécie de “desenvolvimento lento”), trazendo retratos de homens quase perfeitos, representados com certa inocência e aparência delicada, diferente daquilo que é mostrado na TV ocidental. Isso trouxe para as mulheres o sonho do relacionamento perfeito, que seria supostamente realizado com um homem sul-coreano. Na realidade, o “soft power” explica tal efeito.
Você sabe o que significa esse conceito?
O soft power é o poder de convencer e influenciar o público global por meio da cultura, dos valores e produtos de um país. Ao apresentar o país como um lugar ideal, as produções sul-coreanas fazem com que as pessoas desenvolvam uma visão positiva e interajam mais com a cultura local.
Essa estratégia intencional de romantizar os relacionamentos nas produções sul-coreanas leva muitos fãs a crerem que a realidade do país é como a das tramas, e que os homens têm as qualidades de seus personagens favoritos. Essa percepção tem incentivado mulheres a viajar para a Coreia do Sul em busca de um romance “perfeito”, como nos dramas, resultando em um aumento significativo no número de turistas nos últimos anos.
Em uma entrevista feita pela CNN, a pesquisadora e pós-doutoranda Min Joo Lee nomeia “Efeito Netflix” à análise de comportamentos de mulheres que se hospedam na Coreia do Sul, passam o dia assistindo a K-dramas e saem à noite em busca de seu par perfeito, graças à ilusão trazida pelas retratações nas novelas.
Mas a romantização nos doramas vai além dos relacionamentos perfeitos. A idealização interfere também na maneira de ser e agir das personagens. As meninas são retratadas como magras, hiperfemininas e delicadas, e em um cenário mundial onde a comparação feminina já é um grande problema, os doramas trazem um peso ainda maior para a questão.
SUCESSO MUSICAL
Não são só as produções televisivas asiáticas que fazem sucesso no Brasil. Nas últimas décadas, os grupos musicais de K-pop, os famosos boygroups e girlgroups, conquistaram os corações de milhares de brasileiros e se tornaram um sucesso estrondoso. Grupos coreanos como BTS, EXO, BlackPink, Twice e NewJeans possuem fãs dedicados e crescem cada vez mais. O K-pop traz a mistura de músicas animadas e danças contagiantes, e os grupos masculinos são os mais adorados pelos admiradores do gênero musical.
Tudo começou a partir de 2011, com o estouro da música Gangnam Style, do PSY, sucesso que é lembrado até os dias de hoje com sua dancinha vibrante e viciante. Em maio de 2019, um dos boygroups de maior sucesso, o BTS – sigla para Bangtan Boys – veio ao Brasil para dois shows em São Paulo e teve seus ingressos esgotados no mesmo dia da abertura das vendas. O show de dois dias teve cerca de 80 mil pessoas com produções grandiosas, que contaram com o artista JungKook voando sobre a plateia de fãs enlouquecidos.
Ana Paula da Silva Gomes, estudante e grande fã do grupo, conta que vai todos os sábados à Feira do Bom Retiro, no centro de São Paulo, point perfeito para os fãs da cultura coreana. Com uma estrutura de palco, os fãs podem dançar as músicas dos seus artistas favoritos, como em um vídeo de TikTok de alguns segundos. “Meu sonho é conhecer o BTS! Comecei a gostar do grupo em 2019 quando uma amiga me falou sobre ele na escola e, desde então, virei fã. Venho aqui na feira todos os sábados.”
O sucesso do BTS é tanto que o fã-clube do grupo passou a celebrar anualmente a data em que o BTS debutou. Iniciada a primeira edição do “BTS Day” em 2017, a cada ano que passa, o evento se expande. Para o ano de 2025, o evento será realizado em mais de uma cidade do Brasil, e os fãs prometem algo grande e cheio de novidades.
A gastronomia oriental no Brasil
Se você já experimentou uma comida diferente e achou esquisita, imagina quem precisou atravessar o mundo e mudar totalmente seus costumes no século 20? Foi o que aconteceu com os primeiros imigrantes asiáticos que chegaram no Brasil. Haliana Youshu, moradora do bairro Bom Retiro, famoso pela forte presença asiática, é neta de imigrantes japoneses e reconhece que o processo de imigração foi crucial para a história da família. “Minha parte materna veio no início da imigração japonesa e sofreu muito nas fazendas. Já minha parte de pai chegou depois da Segunda Guerra Mundial”, relembra.

As memórias complementam o dado histórico: os dois maiores picos de imigração japonesa no Brasil foram no começo do século 20 – primórdios da habitação japonesa e asiática no geral – e durante o período da pós-guerra. Na época da primeira imigração, o Japão se encontrava no meio de uma crise econômica e social, por conta de uma urbanização desordenada que causou o inchaço populacional e culminou em uma onda de desemprego no país. Já no Brasil recém abolicionista, a demanda de mão de obra na zona rural foi fator decisivo para a massiva imigração japonesa. A segunda onda de imigração, em 1945, ocorreu devido a devastação do território japonês pela Segunda Guerra Mundial.
Outra imigração de muito destaque na história brasileira foi a imigração coreana. Em um contexto muito similar à imigração japonesa, os coreanos começaram a deixar o país nos anos 1960, quando a Coreia do Sul passava por um momento miserável após as consequências da Guerra da Coreia. No Brasil, Juscelino Kubitschek implantava a política de “50 anos em 5”, e havia alta demanda de força de trabalho na zona rural. Mais uma vez, deu casamento: milhares de coreanos vieram ao Brasil e se instalaram no campo.
Mas, logo, essa realidade mudou. O estranhamento da gastronomia brasileira mais uma vez afetou os costumes dos imigrantes asiáticos. No campo, a falta de infraestrutura rural impossibilitava as condições do trabalho agrícola, e não demorou muito para que houvesse um intenso êxodo rural para a cidade, especialmente para São Paulo, já a maior área comercial do País. Com o passar dos anos a decisão se mostrou acertada, a população coreana ganhou notoriedade em seus negócios e na popularização da culinária coreana, devido ao êxodo rural, os bairros da Liberdade e Bom Retiro ganharam protagonismo oriental, e hoje são bairros de referência na cultura asiática de São Paulo.

O “abrasileiramento” desses alimentos se converteu em um fenômeno lucrativo, sendo uma das gastronomias mais renomadas do Brasil. Hoje, é possível encontrar diferentes estilos de cardápios e ambientes, que vão de self-services a casas tradicionais com opções para todos os bolsos. Por isso, o aumento na variedade de restaurantes tornou o consumo mais acessível a diversos públicos, e hoje, conta com restaurantes que atendem desde crianças a jovens e idosos.
Andando pelo bairro da Liberdade, você vai encontrar um bairro antigo, de 119 anos de história que foi influenciado pela civilização oriental e conta com jardins japoneses, comércio tradicional e, principalmente, feiras gastronômicas e restaurantes. O restaurante “Temaki do Ailton” é administrado por Ailton Toshifumi Tateishi, que trabalha há 30 anos com a culinária japonesa. Seu cardápio inclui pratos que conquistaram a freguesia, como o temaki “samurai“, que se diferencia por incluir peixe frito e cebola roxa em conserva na receita.
A jornada de Ailton não foi fácil. O atual chefe de cozinha trabalhava na área de tecnologia e, após ser diagnosticado com gastrite causada por extrema preocupação e grande demanda de seu antigo trabalho, iniciou um curso de culinária como hobby. Sua dedicação a um campo diferente acabou ajudando-o a superar a doença e a descobrir uma nova habilidade: a gastronomia. A culinária japonesa passou a fazer parte da sua vida e a unir familiares e amigos, que sempre o acompanhavam durante o preparo das refeições: fazer comida é como se uma chavinha se desligasse. Por que eu passava mal em outra área? Porque eu não desligava. Foi por isso que ele passou a utilizar a culinária como refúgio e, logo depois, começou a trabalhar exclusivamente com o restaurante. Inicialmente, seu trabalho era feito em uma feira localizada na praça da Liberdade, mas a partir de 2024 abriu as portas para um restaurante próprio.

Mas mesmo com a popularização desses restaurantes e rodízios que se adaptaram ao abrasileiramento da comida asiática, ainda há quem tenha interesse pela comida asiática raiz e muitos priorizam frequentar esses restaurantes que não aderiram às preferências nacionais.
Como exemplo dessa culinária raiz, encontramos em uma rua movimentada no bairro da Liberdade, o Sushi Isao, restaurante de pratos tradicionais japoneses, que há 35 anos começou uma história que até hoje serve como referência a turistas e moradores locais. Isao Sushi, sushiman e fundador do restaurante, é famoso na região por servir uma extensa fartura de ingredientes de primeira qualidade e preparar comidas tradicionais na hora, e por isso, os pratos são considerados uma verdadeira obra de arte.
Já para a youtuber e cozinheira Marisa Ono, a gastronomia sempre fez parte da sua vida, começou a cozinhar ainda na infância e viveu por 16 anos no Japão. Foi retornando à terra dos ancentrais que pôde conhecer a gastronomia tradicional do cotidiano japonês. Para a nipo-brasileira, a comida cria um ambiente de encontro de identidade cultural. Há mais de 14 anos, Marisa compartilha receitas de comidas do dia a dia japonês em seu canal do Youtube: Marisa Ono. Marisa também acredita que a comida tem o poder de aproximar as pessoas: a comida cria um ambiente para as pessoas falarem e se unirem.
Uma nova era na indústria asiática
Por muitos anos seguidos, a Coreia do Sul, Taiwan, Hong Kong e Singapura foram o centro de fabricação da indústria capitalista americana, europeia e japonesa. O berço industrial do mundo recebeu forte investimento americano, principalmente no período da Guerra Fria, e estabeleceu-se uma forte industrialização em parte do leste asiático. Isso porque, as transnacionais, encontraram nos países subdesenvolvidos asiáticos, grande oferta de mão de obra barata, já os Estados Unidos, por sua vez, viram uma forma de fortalecer aliados capitalistas.
E assim deu início à industrialização dos países emergentes. Inicialmente, as transnacionais fabricaram as commodities tecnológicas – produtos de baixo valor agregado que precisam ser produzidos de forma padrão e em larga escala para compor o produto final – como, por exemplo, baterias de lítio, que são parte essencial de carros e tecnologias de smartphones. Como esperado, as indústrias estrangeiras instaladas na Ásia tiveram grandes lucros. Mas para os anfitriões asiáticos, chegava o início de uma nova era.
Para o pesquisador da USP, Pedro Barbosa, no artigo Estados de bem-estar do Leste Asiático a industrialização estrangeira foi rápida e serviu de aprendizado para os asiáticos que integram o grupo dos NICs – Newly Industrialized Countries – grupo formado por países que tiveram uma industrialização tardia, mas que, enxergaram no know-how industrial uma a oportunidade de aprender técnicas estrangeiras para desenvolver a indústria local. Nesse ponto da história surgem os produtos “made in China”, que você já deve ter visto por aí, como caixinhas de som, carregadores, fones de ouvido e até mesmo nas etiquetas de roupas.
Para a doutora em Relações Internacionais Kelly Ferreira, ao longo desses anos de exportação de produtos de baixo custo, os países do Leste Asiático aprenderam a engatinhar (exportando produtos de baixo valor agregado), andar (aprendendo as malícias das exportações) e agora, que já têm experiência no mercado internacional, estão correndo. Esse aprendizado permitiu que os países emergentes deixassem de “ser apenas fábricas do mundo” e passassem a disputar a liderança tecnológica, como ocorre atualmente.
De berço da indústria estrangeira à terra das renomadas marcas
Você deve estar se perguntando como esses países evoluíram tanto em tão pouco tempo. Bom, não tem muito segredo para o protagonismo industrial asiático atual: foram feitos grandes investimentos governamentais na educação, aliados à intervenção estatal do governo na economia. Foi assim que certos países asiáticos conquistaram o desenvolvimento industrial tecnológico.
As primeiras duas décadas do século 21 foram marcadas pela ascensão de diversos países asiáticos no ranking mundial, além de ter mudado a forma como esses países se mostram ao mundo através dos filmes e doramas. Essa disseminação da indústria cultural asiática modificou a visão do mundo sobre as marcas asiáticas: de produtos “ching ling” – termo pejorativo popularmente usado para falar de produtos de baixo valor – a grandes marcas que estão na boca do povo, ou melhor dizendo, no topo da prateleira mundial, como a Toyota, Kia, JAC, Samsung, Xiaomi e até a queridinha que tem ditado a moda ocidental: a Shein.
No Brasil, o boom dos doramas e K-pops tem trazido pessoas de diversos Estados do país em busca de conhecer o pedaço da Coreia paulista, o bairro do Bom Retiro em São Paulo. Para o comerciante João Lee, o mercado brasileiro já tem sentido essa influência da indústria cultural. O coreano-brasileiro afirma se manter otimista para os próximos anos, “graças ao interesse pela cultura oriental, o crescimento do comércio asiático na região tem sido constante. Penso que daqui a 5 anos, essa feira será bem maior.”
Além da influência cultural no comércio asiático, a alteração na dinâmica econômica do continente também impactou o protagonismo da economia de certos países. Como mostra a análise gráfica do Trading Economics, o PIB (Produto Interno Bruto) chinês avançou nos últimos anos, e atualmente a China representa quase 17% da economia mundial, de acordo com as informações divulgadas pelo World Bank:

Hoje, a China é a segunda maior economia do mundo. E a rivalidade com os Estados Unidos levanta uma questão: estamos vivendo uma segunda Guerra Fria? Segundo a especialista Kelly Ferreira, a Guerra Fria foi, na época, uma disputa de ideologia política, enquanto o confronto atual entre a China e os EUA se trata de uma disputa comercial. A mudança econômica que estamos testemunhando – a união de países como Japão e China, que ao longo da história são países de ideologias diferentes – no cenário atual, trata-se de proteger seus interesses econômicos do conflito com os Estados Unidos, explica a especialista.