Reportagem analisa as dificuldades e a importância da entrada de pessoas com deficiência no mercado trabalhista
Por Bruno Martineli, Luiza Hodnik e Sophia Goulart
Segundo dados do módulo Pessoas com deficiência, da Pnad Contínua 2022. Das 99,3 milhões de pessoas ocupadas no Brasil em 2022, 4,7% eram da população com deficiência.
Isso significa que de cada 4 pessoas com deficiência, apenas 1 está contratada e trabalhando no Brasil. A inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho é um tema que vem crescendo, mas ainda há um longo caminho pela frente. Apesar de algumas ações realizadas pelo governo brasileiro, como a Lei de Cotas (Lei nº 8.213/91), na prática o que reina é o grande preconceito vivenciado por essa parcela da população, que se soma à desconfiança de empresas pela sua capacidade física e cognitiva e à falta de infraestrutura para que eles consigam ter as melhores condições para trabalhar.
Qual a importância da inclusão de pessoas com deficiência?
No artigo “Pessoas com deficiência e ambiente de trabalho: uma revisão sistemática” publicado pela Revista Brasileira de Educação Especial, a “tal inserção – também denominada integração – é associada a um processo parcial e condicionado às possibilidades de cada pessoa que, independentemente do tipo e do grau de deficiência que possua, deve buscar um autodesenvolvimento para ser considerada apta a ocupar os espaços de convívio social, incluindo o mercado de trabalho”.
A presença de PcDs no ambiente de trabalho é vital. Primeiro por permitir o desenvolvimento de autonomia, autoestima, já que faz a pessoa com deficiência se sentir pertencente e participante na sociedade de forma ativa. Para a sociedade, promove a inclusão, a diversidade, a empatia nas empresas. Para todos, “quebra tabus” e amplia a compreensão social das diversas formas de ser e de agir.
Quais os maiores empecilhos para as PcDs

A entrada no mercado de trabalho é uma das maiores dificuldades na vida de qualquer um no Brasil. Mas para uma pessoa com deficiência é ainda mais complicado. Um dos principais problemas é o preconceito vivido por eles, como afirma Andrea Tavares, professora especializada em surdez na Divisão de Educação e Reabilitação dos Distúrbios da Comunicação (Derdic). “A principal barreira que as pessoas com deficiência enfrentam hoje tem a ver com o paradigma e essa percepção que a sociedade tem de olhar para os deficientes como alguém limitado, que tem uma falta de uma capacidade física, e não olhar pro potencial humano”, disse.
Isso se agrava com empresas que não oferecem itens necessários, como rampas, banheiros adaptados, intérprete de Libras e entre outros instrumentos necessários para a boa adaptação da PcD no ambiente profissional. Essa falta de infraestrutura causa o afastamento de pessoas com deficiências de empresas, até mesmo quando há intenção de contratá-las.
Outro ponto importante é a falta de qualificação profissional, consequência direta de um sistema educacional que não é inclusivo. Muitas pessoas com deficiência não têm acesso à mesma qualidade de ensino ou a materiais adaptados, o que dificulta sua formação e, consequentemente, o ingresso em vagas que exigem maior capacitação.
Como a pessoa com deficiência se prepara para o mercado de trabalho
O papel escolar de incluir essa criança com recursos adaptados e professores capacitados é essencial para que o aluno com deficiência consiga se reconhecer como parte do grupo, assim desenvolvendo suas habilidades e sua autoestima. Porém, as salas de aulas não cumprem essa tarefa. Heloisa Rocha, jornalista e idealizadora do projeto Moda Em Rodas, explica: “Educação é o caminho, para mim, de toda e qualquer mudança. Sem essa educação, a sociedade vai continuar tendo ‘pré-conceitos’ com essa parcela da população, que, segundo o IBGE, representa 7,3% da população nacional. Enquanto isso não ocorre, a contratação do profissional com deficiência vai continuar sendo algo obrigatório e não natural”.
Após a fase escolar, o trabalho de ONGs, empresas e órgãos públicos para capacitar esses, agora, jovens, ajudam no desenvolvimento de competências técnicas e comportamentais. Nesse momento, o principal destaque é a criação da Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015) que garante esse direito e incentiva a criação de políticas de incentivo para PcDs.
A Lei de Cotas impactou a inclusão de PCDs nas empresas?
Publicada em 24 de julho de 1991, a Lei nº 8.213, conhecida como Lei de Cotas, estabelece que empresas com 100 ou mais empregados reservem um percentual de suas vagas para pessoas com deficiência. Trinta e quatro anos depois, continua sendo uma das políticas públicas mais eficazes no processo de inclusão social. Segundo dados fornecidos pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), de janeiro a junho de 2025, 63 mil PCDs foram contratados, com 93% dessas contratações ocorrendo em empresas que são obrigadas a cumprir com a cota.
É preciso entender que “mais eficaz” não é sinônimo de “suficiente”. Andrea Tavares explica: “O que eu vejo, na minha experiência, é que as empresas só abrem essa opção quando recebem a fiscalização […] chegam na gente [Derdic] quando tem tipo, seis meses para tomar alguma medida”. Relata também que muitas tentam driblar a lei: “contratam por dois anos e aí mandam embora e contratam de novo. Ou ainda, contratam como aprendiz, dão a formação, mas não deixam atuar dentro da empresa, mandando de um curso para outro…”. “Muitas tem mudado a forma de contratação para Pessoa Jurídica (PJ). Assim, se você tem, por exemplo, 50 CLT e 300 PJ, esses últimos não constam no número de funcionários e assim a empresa não é obrigada a cumprir com as cotas”.
É evidente a falta de outras políticas públicas aderentes aos direitos da PcD no meio trabalhista e, com o atual processo de banalização que a questão vem enfrentando, não parece que isso vai mudar. Andrea se mostra preocupada ao falar da equiparação de pessoas acometidas por fibromialgia com pessoas com deficiência por meio da Lei nº 15.176, sancionada em 24 de julho de 2025. “Isso atrela deficiência à doença e fomenta a narrativa de que a pessoa com deficiência é incapaz de realizar seu trabalho por conta de sua condição e que deve ser tratada. Deficiências são características da pessoa”, explica.
Embora a reivindicação de direitos dos indivíduos afetados pela fibromialgia e outras doenças correlatas seja de extrema importância, é necessário manter a distinção entre essas condições e a definição de deficiência. Segundo o artigo 2º da Lei nº 13.146, é considerada deficiente a pessoa que possui impedimento de longo prazo advindo de características congênitas, hereditárias ou adquiridas no decorrer da vida, e de natureza física, mental, intelectual ou sensorial. À primeira vista, doenças crônicas parecem se adequar a essa categoria. Porém, são diferenciadas à medida que independente de sua longa duração, podem ter seus sintomas amenizados por meio de tratamentos e medicações.
Como as empresas podem superar a visão assistencialista
Para a professora Andrea Tavares, a solução definitiva para essa questão depende da conscientização social. Contudo, isso só ocorrerá com políticas públicas fortes e projetos sociais, mesmo assim levando um longo período. Uma resolução a curto prazo exige uma série de medidas a serem tomadas por empresas e indivíduos.
Muitas empresas preocupadas somente em cumprir com a Lei de Cotas ignoram as competências técnicas do funcionário PcD e as adequações devem ser feitas dependendo do cargo. Há também resistência e receio ao lidar com a diversidade, visto que tornar o ambiente de trabalho um espaço acomodativo para todos coloca em xeque diversos aspectos da tradicional cultura corporativa, embasada nos valores de um pequeno grupo privilegiado. Isso faz com que aqueles colocados à margem se vejam forçados a buscar provar sua competência, mesmo que precisem dificultar a própria vivência para assim fazer.
Cabe às corporações repensarem suas estruturas e procurarem conhecer projetos focados na inclusão. É viável ir atrás de realizar parcerias com órgãos como a Derdic, que fornece um programa de empregabilidade com serviços destinados a empresas, como cursos de inclusão orientada, palestras e assessoria. Andrea dá ênfase na efetividade das chamadas palestras de sensibilização, que “trazem vivências bem provocativas, bem sensoriais, que permitem uma aproximação de como é navegar pelo mundo por outros sentidos”, facilitando assim a compreensão da condição.
Qual o papel das inteligências artificiais nessa questão?
Um relatório recém-divulgado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) revela que cerca de 25% das ocupações no mundo todo poderão ser afetadas pelo uso da IA, com 3,3% correndo risco de automação. Além disso, 4,7% desses cargos vulneráveis são ocupados por mulheres, em contraposto aos 2,4% ocupados por homens. Vale ressaltar que a maioria das posições incluídas são de caráter administrativo e/ou operacional, que constituem a maior parte dos cargos ocupados por PCDs, muitas vezes desencorajados pela própria empresa a aderir ocupações com maior atuação ou que de prestígio. Para se ter uma ideia, segundo a pesquisa “Radar da Inclusão: mapeando a empregabilidade de Pessoas com Deficiência”, realizada pela Talento Incluir e parceiros, 63% de PCDs empregados a mais de três anos na mesma empresa nunca receberam uma promoção.
O uso da seleção automatizada na contratação fortaleceu a filtragem enviesada pela qual currículos pertencentes a PcDs passa. No 2° seminário do Observatório Brasileiro de Inteligência Artificial, a professora Dora Kauffman relata que muitas das IAs utilizadas nesse processo tem como modelo de “aprendizagem” o deep learning, que busca simular a capacidade humana de tomar decisões. O sistema faz isso por meio do reconhecimento de padrões, adotando uma abordagem estatística e focada em solucionar o problema o mais rápido possível. Se o problema em questão for encontrar o funcionário cujo perfil melhor se adequa aos critérios selecionados, a IA irá excluir todos os outros currículos com qualquer mínimo desvio do padrão. Por realizar essa filtragem com base em dados já existentes, a tecnologia adere aos estigmas sociais que os permeiam, pois foi programada para servir e afirmar os interesses do usuário independente de suas implicações.
Ao buscar atalhos para o aumento da produtividade, objetificamos aqueles que são diferentes, os tratamos como meras anomalias na curva que devem ser corrigidas ou desconsideradas. Esquecemos que para alcançar a tão sonhada utopia, supostamente em nome da qual realizamos esses avanços, precisamos fazer do mundo um lugar melhor para todos, independente de sua capacidade de contribuir junto a nós nesse processo. Não se pode deixar de lado o olhar humano quando se trata de gerenciar pessoas.
Como o capacitismo prejudica o reconhecimento de um artista
O capacitismo enraizado na sociedade gera diversas dificuldades para um artista com deficiência, como no caso de Edgar Izarelli, 35, morador do Embu das Artes. Ele cursou letras na Universidade de São Paulo (USP) e é autor de oito livros de poesia, além de atuar como revisor textual e consultor literário. É casado e pai de dois filhos. O poeta possui paralisia cerebral e enfrenta empecilhos para o reconhecimento do seu trabalho artístico.

“As pessoas, independentemente da qualidade do seu trabalho, vão olhar para a pessoa primeiro e vão bater palmas, dizendo que você é um exemplo de vida”, afirma Edgar. O artista conta que passou por dificuldades em seu desenvolvimento criativo no início de sua carreira por não receber críticas. “Eu não sabia se o que estava fazendo era bom ou ruim, porque as pessoas olhavam para o meu texto e diziam que era um exemplo”, continua. Ele percebe que há um sentimento de pena por parte da sociedade em relação a ele, gerando maior destaque para a sua deficiência do que para a sua arte.
Edgar vende seus livros na praça do Embu, abordando as pessoas nas mesas dos restaurantes e bares. Explica que muitas vezes é confundido com alguém em extrema vulnerabilidade social: “Assim que me aproximo de algumas mesas, eles acham que estou pedindo esmola, nem deixam eu mostrar o trabalho e me dão dois ou cinco reais”. Comenta que ainda existe a estereotipação das pessoas cadeirantes como alguém em situação de grande pobreza. “Eu tenho espasmos, meu cabelo fica bagunçado e, por conta dos meus movimentos, meu corpo é muito mais quente do que o, talvez, normal, transparecendo uma imagem de alguém que está realmente em vulnerabilidade social, apesar de não ser a intenção e é uma coisa inevitável para o corpo que eu tenho”, diz.
Também existem pessoas que o ignoram quando se aproxima da mesa. “Geralmente, à noite eu não ligo porque no Embu das Artes tem som mais alto, música para todos os lados e não consigo falar e, muitas vezes, as pessoas nem sabem que eu consigo falar”, conta. Às vezes, Edgar é ignorado. “Quando acontece de dia, eu fico mais bravo porque estou falando com a pessoa, mesmo que ela não queira meu trabalho, não custaria ela responder o meu ‘boa tarde’”.
Como PCDs podem contribuir com a cultura
Edgar conta que até seu quarto livro, tentava desviar do tema da sua deficiência, porque gostaria que as pessoas lessem suas obras antes de conhecerem sua condição física. Tinha receio da exclusão. Quando se casou, vieram questões para a sua vida como o cuidado com a casa e a paternidade. “Isso tudo acabou virando poesia, e daí pra frente sempre tem alguma menção sobre deficiência nos meus livros”, explica.
Seu último lançamento chama-se O Exemplo e trata-se da sua autobiografia em formato de quadrinhos, retratando o capacitismo em sua vida, entre outros assuntos.
João Paulo Lima, 32, trabalha como ator e tem paralisia cerebral. Ele explica que na Idade Média, pessoas surdas sofriam discriminação por não conseguirem se confessar e com isso se tornavam bobos da corte para sobreviver. Pessoas com deformidades físicas eram conhecidas como atrações bizarras. A partir disso, o artista afirma que seu propósito é que a plateia ria com ele, e não dele. “Por isso, decidi fazer um stand-up sobre mim mesmo, para denunciar a falta de acessibilidade e desmistificar a ideia de que pessoas com deficiência são seres assexuados”, conta.
Este conteúdo utilizou Inteligência Artificial nas seguintes etapas:
- Apuração: utilizada para auxiliar na apuração
IAs utilizadas: ChatGPT