sexta-feira

31-outubro-2025 Ano 1

Simplesmente Gê 

As memórias da fundadora do Ballet Stagium 

Por Beatriz Borba, Bruno Squillante, Luiza Kellmann, Pedro Teles Marin

Geralda apreciando uma fotografia de quando era mais jovem | FOTO: Pedro Teles Marin

Em um quarto compartilhado entre mulheres de uma casa de repouso, contra a parede paralela à porta, há um armário antigo com um pequeno cartaz escrito “Geralda Bezerra de Araújo”. Dentro dele, em suas prateleiras, há pequenos fragmentos da vida daquele nome – desde fotos até recortes de jornais. Ao lado do envelhecido móvel, impossível não notar uma elegante senhora sentada na beira da cama, apoiando as mãos em sua bengala enquanto espera uma das enfermeiras terminar de arrumar seus finos cabelos esbranquiçados. 

Ela sorri, mas pede para que a moça pare. Já está bom. Levanta-se e caminha em direção à área externa. Ela faz de seu caminhar tão suave e ritmado que evoca passos de ballet. Como se, mesmo aposentada, o lar de idosos em que vive fosse seu palco particular.  

Geralda Bezerra de Araújo, ou simplesmente “Gê”, como gosta de ser chamada, recorda momentos marcantes. Ela é uma das fundadoras da escola de dança e companhia artística Ballet Stagium. Entusiasmada para contar sua história, segura as fotografias e as repassa como se fosse uma máquina do tempo. Para em uma em especial: a vez em que interpretou Joana D’Arc. A fotografia mostra Gê como protagonista, apoiada sobre a perna esquerda, com sua cabeça elevada. Em um ato poético, mantém sua perna direita esticada quase que ereta. Suas mãos ajudam a compor a pose. Estão em uma posição imponente, com as palmas juntas à frente de seu peito.  

 Numa viagem de família, em um navio para Porto Alegre, a pequena Geralda, girava e esticava os braços acima da cabeça, formando um arco formoso. Sua mãe, Rita Helena a incentivava – “Dança, Gê” – e ela dançava. “Quando deu seus primeiros passos, já saiu dançando”, costumava dizer a mãe-coruja da futura bailarina.   

Com 8 anos, pegou na mão da mãe e disse que queria estudar piano e balé. Dedicou-se ao piano e costumava tocar músicas românticas, de compositores como Chopin. Ao passar das danças da vida, decidiu estudar para passar na Universidade de São Paulo (USP) – seria História ou Psicologia, não tinha certeza. Mas um dia se pegou pensando em como gostava de dançar, então decidiu: “Vou me tornar bailarina”. No Educandário Brasil, conheceu a professora de balé Cleópatra, que logo viu que Gê levava jeito, mesmo sem nunca tê-la visto dançando antes. Dito e feito: a menina pegou uma sapatilha e saiu andando na ponta do pé. Foi adiante, matriculou-se nas aulas de Maria Olenewa – a primeira professora de balé clássico do Brasil. Em seu primeiro dia, Maria olhou para Gê, que chegou de fininho no meio da aula e perguntou:  

– Olha, você quer ser bailarina? 

A resposta foi um “sim”, sincero e ligeiro. Essa autoafirmação como dançarina era tudo o que faltava para ela.  

Geralda segurando uma identificação de uma peça que participou (Alô, Dolly) | FOTO: Pedro Teles Marin 

Com as aulas de Olenewa, Gê ficou amiga da colega Maria Tipitin, que a convidou para formar um grupo de dança: “Geralda, meu namorado [também] é bailarino. Ele quer formar um grupo. Você quer entrar?”. Ela aceitou sem pensar duas vezes. Este fora um dos primeiros convites que recebera de tantos outros que surgiriam ao longo de sua carreira. 

Estrelou em uma adaptação da Broadway no Brasil. “Vai ter uma peça no Rio de Janeiro chamada Alô, Dolly. Eles estão fazendo testes para bailarinas. Você quer?”. Foi o que bastou para que a jovem Geralda vendesse o anel cintilante dado pelo pai e recomeçasse a vida. Foram escolhidas 12 dançarinas entre centenas, e Gê foi uma delas.  

A hoje veterana do balé clássico lembra que ficava nervosa quando subia ao palco. “Nossa, eu tremia feito vara verde!”, confessa. Ouviu incentivos de colegas de cena e de Ademar Guerra, diretor teatral, que a fizeram permanecer na dança. Guerra a avistou e disse em seu ouvido: ela era uma grande intérprete. Não era a primeira vez. Antes, Aracy Balabanian – artista reconhecida como uma das maiores atrizes do Brasil, eternizada por papéis como a “Dona Armênia” na novela Rainha da Sucata e “Cassandra” em Sai de Baixo – também já havia dito a mesma coisa. “Aí eu caí no choro!”, relembra Gê. 

Em meados de 1960, estrelou no Copacabana Palace, na boate, ao lado de Grande Otelo – compositor, cantor, comediante, poeta e consagrado como ator (considerado um dos maiores nomes da cultura popular do século 20) – e Yoko Okada – bailarina (conhecida pela sua participação na Companhia Ballet IV Centenário), coreógrafa e atualmente professora na companhia de dança brasileira Ballet Stagium. 

 De bastidor em bastidor conheceu a bailarina húngara Marika Gidali, que a convidou para ser sua aluna.  Com um sorriso no rosto e os olhos brilhando, Gê conta que achava Marika “um máximo”, mas só a tinha visto no palco dançando. “Eu, ao lado da Marika Gidali, parece mentira”. Se fosse mentira, seria uma daquelas duradouras, já que trabalharam lado a lado por décadas.  

Gê se apaixonava cada vez mais pelo trabalho da figura que não só se tornara um incentivo e uma inspiração, mas que também se tornaria uma grande amiga. Tanto que batizou sua filha com o mesmo nome, Márika. “Por isso que, quando eu me encontro com ela, eu até choro de emoção. Eu beijo a mão dela”, compartilha Gê.  

Nos anos 1970, Geralda fez uma viagem a Curitiba com Marika. Lá encontraram-se com Decio Otero, parceiro da dançarina húngara. Quando retornaram de viagem, voltaram juntos na dança e na vida. O Stagium foi fundado por Marika e Decio com a colaboração e apoio de Gê. Em meio à ditadura militar, o Stagium foi resistência. O Teatro Oficina, o Cinema Novo, entre outros grupos e movimentos artísticos, serviram de alicerces para a companhia e dança. 

 Entre 1974 e 1977, parando de ponto em ponto em 56 cidades banhadas pelo Rio São Francisco, dançou na “Barca da Cultura” e levou a cultura nacional para áreas remotas, junto dos companheiros.  

Foi quando no Lago do Ibirapuera, em um palco flutuante, abrindo os braços com graça, demonstra alguns dos movimentos que fizera. Por meio da dança, as atrizes criticavam os “anos de chumbo”: “Eles [os militares] eram tão burros que não entendiam”, relatou a veterana do balé. Gê, além de bailarina, foi professora de balé clássico, uma das primeiras a ensinar jovens e, também, pessoas mais velhas no Stagium – outra causa pela qual Geralda, assim como toda a companhia, lutou: o fim do preconceito contra esse grupo na dança. Afinal, segundo Gê, a arte não tem idade. 

Geralda quis dar uma pausa em sua carreira quando jovem. Isso porque tinha um namorado que não se sentia preparado para “tomar conta”, segundo as palavras dele, “da bailarina, pelos estudos”. Então, ele pediu que ela arrumasse as malas, porque iria levá-la para a casa de seus pais, em São Paulo. Gê pensou que teria um tempo para relaxar. Até que, em um dia, a oportunidade bateu à porta, tirando-a de seu descanso. Era o diretor de um restaurante. “Num dia me liga o diretor do Beco e no dia seguinte estava dançando no Beco: Eu e Yoko Okada”.  

“Minha vida era um palco iluminado. Eu vivia vestido de dourado. Palhaço das perdidas ilusões…”, assim cantarolou Gê, com certa dificuldade, Chão de Estrelas, composição de Orestes Barbosa e Silvio Caldas. É a canção, diz ela, que define sua vida. Geralda Bezerra de Araújo teve momentos marcantes em toda sua trajetória. Agora restam as memórias, das quais permanecem gravadas em fotografias – no dia a dia do Ballet Stagium e no futuro de cada bailarino, que carrega seu legado com o que mais ama. “O Stagium sou eu”, é o que ela mesma gosta de dizer.  

Hoje, aos 87 anos, mora no Lar Primavera e relata não gostar. Sente saudade de casa e afirma que queria voltar para lá: “Eu não gosto daqui. Eu gosto da minha casa! Os médicos falaram que eu preciso de cuidado o dia todo, mas eu não preciso”, desabafa a eterna bailarina. Gê sofreu um acidente vascular cerebral em 2020 e, por mais que isso tenha a acometido fisica e verbalmente, continua lúcida e mantém sua rotina como pode. Geralda não perde uma apresentação artística, principalmente se for uma produzida pelo Ballet Stagium.  Sempre que consegue, a filha a leva para assistir. “É como se eu estivesse dançando. Não é nem lembrança, é um momento de amor”, declara.  

Geralda com sua filha Márika D’Almeida | FOTO: Pedro Teles Marin 

UTILIZAÇÃO DE IA
Autoria Humana Exclusiva

Este conteúdo não demandou a Inteligência Artificial em etapa alguma do processo jornalístico.

Luiza Kellmann Bertani

Grupo composto por Ana Beatriz Carvalho, Gabriela Zaffiri, Isabella Pimenta, Izabel Grecu, Luiza Kellmann e Maria Eduarda Toti

2 thoughts on “Simplesmente Gê 

    1. Que emocionante pedaço de história… É sobre esse tipo de relato que esperamos ler quando pensamos, quando acreditamos, na beleza da arte.

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