Um panorama geral sobre o fácil acesso à pornografia e como a cultura “do job” se enraizou no entretenimento brasileiro.
Por Bárbara Luise, Fernando Chagas, Karen Lima, Rafael Di Giorgio e Rafaela Maia
Somente alguns cliques. É o que basta para que qualquer pessoa possa acessar um conteúdo que contém pornografia explícita ou implícita. Não estamos falando somente de sites, mas também na simples presença desse tipo de conteúdo até em clipes de música facilmente acessadas por qualquer pessoa.
O que é visto não pode ser desvisto. Fica ali na memória, armazenado em forma de conhecimento ou trauma. Às vezes, para a criança ou adolescente, aquilo que o olho enxergou é interessante e repetidas vezes o jovem assiste o conteúdo pornográfico. A longo prazo, terá efeitos escandalosos.
Palavras, imagens e sons (o audiovisual como um todo) aparecem demais na internet, são presentes no dia a dia das pessoas. O problema é quando elas não passam de meras representações, não geram desconforto. Estão ali somente para dar prazer, agradar. Agora, o que acontece quando essa diversão ultrapassa horizontes e alcança públicos que não deveriam estar ali assistindo ao “espetáculo”?
“Os valores estão invertidos. Infelizmente, ‘vender’ o seu corpo se tornou algo normal e sinceramente não concordo com isso.” Quem diz isso é o produtor musical TyTo, artista da BeatRecords. “Porém, os artistas precisam fazer com que suas músicas e produções vendam e façam sucesso, então acaba entrando nesse meio mais vulgar.” Trabalhando com mix e beats, Tyto entende o impacto que a cultura do funk e a vulgarização do corpo trazem para a música.

A influência da música é gigantesca na vida das pessoas, mas se torna preocupante quando nove em cada dez crianças no Brasil têm acesso à internet – segundo dados da pesquisa realizada pelo TIC Kids Online Brasil 2024. Onde há internet, há música. E, pelo menos até o momento, a música brasileira oscila nesse mix de letras (e clipes) envolvendo conteúdos destinados a públicos mais adultos, mas que atingem jovens também.
No Spotify, existe uma playlist chamada “Top Brasil”, com as músicas brasileiras mais ouvidas do momento. Alguns nomes já dizem bastante sobre o tipo de letra que se espera encontrar: como “Rabetão de Terremoto”, do DJ CZ; e “Se Essa Bunda For Uma Empresa”, do artista Chefin. Essas são apenas algumas das músicas mais escutadas pelos ouvintes em meados do mês de abril.
Tyto também comenta sobre o impacto gerado em crianças/jovens: “Criança precisa ser criança. Sabemos que a maioria dos pais não supervisiona o que seu filho está vendo na internet, mas nada impede dela ver um clipe de música e pensar que a ‘noitada’ vivida pelo MC do funk é um rolê comum de uma sexta-feira qualquer. Se um adulto pode gostar desse conteúdo, por que uma criança não?”.
O reflexo nas escolas
Tudo bem: sabe-se que pelo menos certa parte de crianças e adolescentes escutam essas músicas consideradas “avançadas” para eles. Porém, e se eles levam esse mundo para os ambientes que vivem, como as escolas? Ficam ali por quatro, cinco horas, talvez até mais no dia. Equilíbrio é uma balança que pende para algum lado constantemente, sem que muitas vezes se perceba.
A coordenadora Nathalie Lunardi Michelini, da escola Educandário, cuida dos alunos de ensino fundamental. Ela relatou as dificuldades percebidas nos últimos anos com alunos por causa da internet, do celular e de conteúdos “mais para a frente”. “Já teve caso de aluno mandando figurinha de hentai (pornô com elementos de mangá) no grupo da sala de aula. Não são todos que fazem algo desse nível, mas sempre ficamos de olho. E não só neles, mas também com os pais. Tem muitos por aí que nem sabem onde os filhos estão depois da escola, simplesmente deixam soltos”.

Relacionando com o tema de sentimentos e sua, frequentemente, difícil compreensão, Nathalie complementa: “Ano passado, fizemos uma atividade com as crianças sobre nomeação de sentimentos. Pode parecer algo estranho, mas elas não sabiam nem definir o que sentiam. Diziam ‘ansiedade’, mas aquilo era ‘medo’. E se alguém não sabe o que sente, com certeza não consegue lidar com todo o turbilhão de emoções que vive”.
O mental da história
Ao contrário do que muitos pensam, o cérebro não atinge seu auge quando chega a maioridade (quando o jovem completa 18 anos). Inclusive, de acordo com a pedagoga Maya Eingenmann em um podcast que participou do G1 afirma que o cérebro se desenvolve até os 25 anos. Ou seja, tudo o que ocorre principalmente nesse primeiro período da vida é ainda mais impactado mentalmente para as próximas fases.
A parte cerebral também é perigosa. Habilidades que se exigem de adultos podem ser aprendidas brincando, como por exemplo a cooperação. Quando a criança está usando o celular, a verdade é que essa ação não agrega em nada para o seu desenvolvimento.
Especializada em psicopedagogia e no momento trabalhando com educação parental, ela conta um de seus casos impactantes envolvendo uma criança e a pornografia. “Já tive caso de uma menina pequena, de 8 anos, que na época da pandemia acessou um site adulto. Depois disso, toda vez que seus pais ficavam sozinhos no quarto, ela ficava ansiosa e chegava a se tremer só de pensar o que eles podiam estar fazendo”, afirma.
Bastou alguns cliques, talvez uma pitada de curiosidade também. O fácil acesso à pornografia gera muitos problemas, e com certeza com essa família não foi diferente. Os pais tiveram até que recorrer a ajuda de algum profissional. Essa é apenas a ponta do iceberg de uma realidade muito tangível e perceptível aos nossos olhos.

Faezeh também comenta sobre o assunto realidade/ilusão no mundo da internet. “Vive-se uma ilusão. As coisas não funcionam na realidade do mesmo modo que se enxerga no celular, com aquele excesso de dopamina. E, quando toca nesse assunto das relações sexuais, não se pode esquecer do respeito: ele vem em primeiro lugar. Respeito pelo seu corpo, respeito pelo corpo do outro.”
No entanto, não podemos abordar somente as crianças. Talvez sejam elas que sofram as maiores consequências, porém os pais exercem um papel importante nesse uso da internet e controle do que está acontecendo. “Precisa do diálogo, até da discussão. É observar o que o filho está assistindo, perguntar o porquê ele está vendo aquele conteúdo. Tem que haver uma parceria. A confiança se constrói assim, sempre levando o respeito em primeiro lugar”, afirma Faaezeh.
Pai e mãe, ou qualquer outro responsável, devem ser a referência. Quando uma educadora parental afirma que falta essa simples conversa entre os membros da família, é revelado um espelho empoeirado de excessos e faltas que estava escondido, esperando ser encontrado.
Sexualidade, pornografia e descobertas
É na puberdade que se iniciam os primeiros desejos sexuais. Por volta dos 8 aos 13 anos (para as meninas) e entre os 9 e 14 (para os meninos), começa essa fase e consequentemente a produção dos hormônios sexuais, como a testosterona e a progesterona.
Um estudo feito pela Research, Society and Development revelou alguns dos impactos sofridos por jovens que consomem pornografia. Entre eles, um início mais precoce da atividade sexual era um ponto observado. A adoção de comportamentos sexuais de risco também não passou batida: muitos não usam proteção e correm o risco de contrair infecções sexualmente transmissíveis, além de poder ocorrer uma gravidez indesejada no meio desse caminho. Esses eventos infelizmente se tornaram mais comuns nos últimos anos, embora não devam transformar-se no “novo normal” para as gerações futuras.
Dialogando com o desconhecido
Ralmer Nochimówski Rigoletto, psicólogo especializado em saúde mental e sexualidade, explica como o acesso precoce da pornografia ou conteúdos pornográficos afeta o desenvolvimento de uma criança ou adolescente.
“Nessa banalização, a principal consequência é a da criança criar como referência aquilo que ela viu. E a gente sabe que a pornografia não é uma relação sexual de verdade. O problema é que a criança não tem essa noção ainda”, explica.
A principal consequência é a da criança criar como referência aquilo que ela viu. E a gente sabe que a pornografia não é uma relação sexual de verdade.
O médico comenta ainda sobre as conexões sexuais e a visão que os jovens (aqueles ligados a pornografia) tem do sexo em si. “Uma dificuldade para manter relações sexuais, uma interpretação de que sempre vai ser doloroso, algo sofrido e com um ferimento. A ideia não é de que aquele orifício está pronto para receber algo. Haverá um ferimento. Acontece que a nossa interpretação primitiva é o alicerce daquilo que a gente vai construir sobre isso depois”, diz Ralmer.
A música, em especial o funk, romantiza a utilização de medicamentos para impotência sexual como o tadalafila e sildenafila (Viagra). Isso influencia jovens adolescentes a fazer o uso desses remédios sem nenhuma prescrição médica, pensando que se transformarão em “máquinas” no momento do sexo. Mas, de acordo com Ralmer, o resultado não é agradável: problemas de saúde, mentais e até emocionais aparecem. “Acredito que, quando ele [o jovem] chega no medicamento, como é de livre acesso na farmácia, ele não pensa que está comprando um remédio, mas sim entende que está ganhando um “turbo” para conseguir fazer aquilo que é esperado dele”.
O perigo de tratar esse tipo de abordagem explícita em audiovisuais normaliza, de certa forma, as relações sexuais exorbitantes que existem em filmes pornográficos. Ralmer explica que a “cena original” interpretada como uma cena de violência por uma criança pode fazer com que ela se torne um violador sexual. “Acho que o uso da pornografia faz com que a criança ou adolescente cresça pensando que sexo é igual ao pornô, e ele tende a ser uma pessoa violenta no sexo, alguém insatisfeito na prática do ato sexual”.
A internet e seu conteúdo: como manejar?
Pai, mãe, criança ou adolescente, todos desempenham um papel nos problemas ocasionados pela internet e seus males. No entanto, pouco é tratado especificamente sobre ela. Como pode todo esse conteúdo estar ali, disponível para que qualquer um acesse? Não há nada a ser feito para controlar essa disponibilidade online?

Fabiana Veloso, especialista na área tecnológica, lembra que alguns sites disponibilizam esse tipo de conteúdo (adulto) sem fazer nenhum tipo de autenticação. Não se verifica a confiabilidade dos documentos exigidos, muito menos a idade verdadeira dos usuários para acessar os sites.
Uma reportagem da BBC News Brasil, feita em 2024, aborda a proibição que alguns estados estadunidenses tiveram em relação a sites pornográficos, a exemplo do PornHub (quarto website mais popular do planeta). ‘Documentos, por favor’. Essa é basicamente a frase que os sites estavam utilizando quando exigiam a comprovação da idade que o usuário tinha.
“Já tive contato com bancos e sei que nesses lugares, por exemplo, há uma auditoria que verifica se o que você colocou de dados no site conferem com os seus dados em documentos. Mas, como esse sistema é mais caro, muitas empresas optam por sistemas de segurança mais baratos e menos eficazes”, diz Fabiana.
Uma das soluções encontradas para o fácil acesso à pornografia se tornou o parceiro dos pais nesses últimos anos. A supervisão é indispensável, mas somente deles poderem ter um sistema que controle o que seus filhos podem assistir, por quanto tempo e o quê estão assistindo é fundamental para a manutenção dos recursos da internet. “Podemos recorrer a alguns buscadores. No Google, existe uma feature que se chama ‘Family Link’. Nela, é possível ter um tipo de configuração a respeito do tipo de busca que seu filho (a) vai fazer, tendo a possibilidade de monitorar essas pesquisas na internet”, afirma Fabiana.
A especialista na área tecnológica ainda aconselha a autenticação multifatorial: nela, é exigida a autenticação do dispositivo que a pessoa está utilizando (nesse caso a criança) e uma outra que pode ser feita por um dispositivo externo, como o que está com a mãe ou o pai. Dessa maneira, é possível afunilar os campos de pesquisa que os filhos podem ter acesso e prevenir os males da pornografia antes mesmo deles surgirem.
parabéns pela conscientização!! 👏👏
Mandaram muito bem.
Parabéns pela matéria!!! 👏