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20-outubro-2025 Ano 1

A infância empreendedora: o novo mito do sucesso nas redes sociais

Promessas de independência financeira antes dos 18 anos alimentam expectativas irreais e colocam em xeque o papel do ensino superior e da educação como caminhos de ascensão. Especialistas alertam para os riscos emocionais dessa nova cultura digital.

Por Camila Fioranelli, Isabelle Gerard, Luiza Chucre e Maria Eduarda Garcia

Nos últimos anos, uma nova onda digital vem moldando o imaginário de muitos adolescentes: a dos influenciadores mirins que prometem independência financeira antes mesmo da maioridade. Com discursos sedutores sobre “mentalidade milionária” e “liberdade financeira”, esses jovens criadores de conteúdo despertam não só curiosidade, mas também uma perigosa idealização do sucesso instantâneo, especialmente entre estudantes do ensino médio que passam a enxergar o caminho acadêmico como obsoleto.

Alejandro Ferreira (@aleferreirabr01) é um empresário de 18 anos, que possui três empresas e já faturou mais de 1 milhão de reais com o seu curso de empreendedorismo digital.  À AGenZIA, ele compartilhou sobre a sua trajetória e o crescimento expressivo de jovens que têm buscado construir sua carreira através do empreendedorismo.

Empreendedorismo digital na prática

O jovem conta que iniciou na internet quando tinha 16 anos e desejava conciliar o virtual com o curso de design, mas percebeu que poderia expandir seus horizontes ao empreender. Ele abandonou os estudos e começou a trabalhar com o marketing digital,  ensinando para o público como fazer isso, com o auxílio da internet e da IA. Dois anos depois, sua principal ocupação é por meio das mentorias voltadas a alavancar vendas no ambiente digital, além de estar desenvolvendo um sistema vinculado com a inteligência artificial que amplie seus alcances e  promova maior visibilidade.

Em uma participação que fez em um podcast, ele afirma que “pré-adolescentes com idade entre 12 e 15 anos têm faturado até cinco vezes mais que os professores graças à produção de conteúdo digital”. Ele ainda reitera que foi isso que ocorreu com ele, e, que agregava mais do que o conteúdo apresentado na sala de aula. 

Para Alejandro, a educação básica está cada vez mais precária e defasada no Brasil, de modo que “preparam crianças e adolescentes apenas para provas e vestibulares em vez de instruir os jovens sobre as necessidades básicas da vida adulta” sobretudo a gestão financeira. O empreendedor chega a afirmar que, para ele, o montante que seria destinado para um curso de educação superior deveria ser redirecionado para o início de um investimento próprio.

Na sua visão, além de “recuperar o dinheiro investido”, haveria um lucro em cima da ação em um período de tempo reduzido e agregaria mais no crescimento pessoal.  “Graças a internet, posso impulsionar e viabilizar para que cada vez mais pessoas tenham o conhecimento que é possível que haja mudanças radicais.”. Ferreira reforça que, embora o retorno de seu trabalho seja atraente, empreender não é fácil e é necessário força de vontade para continuar e disposição para trabalhar no regime 7×0 sendo o seu próprio funcionário e chefe.

Essa visão acompanha uma tendência que tem se consolidado entre os jovens brasileiros. Segundo um estudo do Sebrae, baseado em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad), o número de jovens entre 18 e 29 anos que decidiram empreender cresceu 25% nos últimos 12 anos, alcançando recordes de remuneração em 2024. Esses jovens donos de negócio faturaram cerca de 4,9 milhões de reais em 2024, contra 3,9 milhões de reais em 2012 e vêm reduzindo a desigualdade de rendimento em relação a outros empreendedores mais experientes. O estudo mostra ainda que seus rendimentos médios  chegam a 2.567 reais em 2024, enquanto a média geral dos donos de negócio foi de 3.477 reais. Mesmo com a diferença, os jovens têm registrado crescimento constante desde 2021.

Os impactos na educação

Segundo a psicopedagoga Angela Cristina Victorino, especialista em neuropsicopedagogia e neuropsicanálise, há uma explicação científica para essa vulnerabilidade. “O córtex pré-frontal do adolescente ainda está em formação. Eles estão em uma fase de intensa busca por novidades e reconhecimento, o que os torna mais receptivos a receitas prontas de sucesso”, explica. Essa característica neurológica ajuda a entender por que muitos jovens se deixam levar por promessas que parecem fáceis, rápidas e sem esforço.

Para Victorino, o ensino superior perde espaço diante da promessa de recompensas imediatas. “A busca por sucesso e recompensas rápidas atrai o adolescente. A faculdade, por outro lado, é um processo longo, o que faz com que ela fique em segundo plano”, afirma. Essa lógica imediatista, alimentada por perfis de redes sociais, cria uma distorção na percepção da realidade profissional.

“As novas gerações têm uma urgência muito forte, porque estão acostumadas a ter tudo na palma da mão. Isso gera uma falsa percepção de que o sucesso acontece sem esforço.”

Angela Cristina Victorino

Além de afetar o valor atribuído à educação formal, essa mentalidade influencia também a visão sobre o trabalho. Para a psicopedagoga, o modelo tradicional de emprego, (com carteira assinada e estabilidade), perdeu atratividade. “A nova geração busca independência. A hierarquia passa a ser vista como algo ultrapassado, e a estabilidade, como algo entediante em um mundo que muda o tempo todo”, avalia a psicopedagoga.

O resultado desse contexto é um aumento nos níveis de ansiedade e frustração entre os jovens. A constante comparação com influenciadores bem-sucedidos, segundo Victorino, gera uma sensação de fracasso. “As postagens mostram apenas um mundo irreal. As dificuldades e os tombos raramente são mostrados. Isso cria uma falsa ideia de que tudo acontece por sorte”, destaca.

Diante desse cenário, a especialista defende um papel mais ativo de pais e educadores na identificação de comportamentos preocupantes, como isolamento, consumismo e baixa autoestima. Ela também reforça que os influenciadores e seus responsáveis têm responsabilidade ética sobre o conteúdo que produzem. “Promessas de sucesso garantido enganam e influenciam. O sucesso financeiro depende de muitos fatores, e o conhecimento é um deles”, afirma.

Sendo assim, o equilíbrio entre o empreendedorismo e a valorização da educação formal está no aprendizado contínuo. “Ninguém tira o conhecimento de você. Somente se mantém no topo quem segue se aprofundando naquilo que faz. Ter um propósito é o que nos salva do vazio e da frustração”, diz Victorino. 

Em contraponto à busca por enriquecimento rápido, a percepção dos educadores e especialistas em educação lança luz sobre os riscos do desinteresse pelo ensino formal e superior. Bernardo Soares, especialista em educação e aplicação de tecnologias em sala de aula, em entrevista concedida à revista piauí de fevereiro, lamenta que as dificuldades do mercado de trabalho. Com salários baixos e cargos que não exigem o diploma universitário mesmo para formados, somado ao retorno rápido de lucro e visibilidade que as redes sociais oferecem, as profissões tradicionais tornam-se menos atrativas. Ele relata que, por vezes, ao explicar as condições do mercado, acaba desincentivando alunos que o procuram a seguir carreiras que almejavam, como a de professor.

Foto: Pixabay/ Pexels

Outros especialistas apontam que o problema é sistêmico. A professora da Fundação Getulio Vargas (FGV) Renata Tomaz, também à piauí, que estuda a presença de crianças e adolescentes na internet há mais de dez anos, percebeu que a paisagem mais colaborativa e com potencial educativo que as redes ofereciam no passado foi transformada pela plataformização e pelo algoritmo. Em suas pesquisas, ela ouviu repetidas vezes de adolescentes a frase: “Eu não preciso crescer para fazer dinheiro”. Para Tomaz, esses jovens buscam por “figuras dignas de prestígio”, que, no feed do Instagram e no YouTube, são frequentemente os coaches e influenciadores que ostentam carros e apartamentos luxuosos, ocupando o espaço que antes era de ídolos como jogadores de futebol.

A desvalorização do ensino superior, inclusive, se reflete em dados: segundo o Inep, o número de inscritos no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) caiu pela metade, de 8,4 milhões em 2015 para 4,8 milhões na edição deste ano. Pesquisadores veem nesse fenômeno, para além da proliferação de cursos a distância de faculdades privadas, o desinteresse dos jovens, pois o estudo não é mais visto como garantia de bons salários e vida estável. Essa percepção se alinha à pesquisa da plataforma de vagas Indeed de 2025, na qual 51% da Geração Z considera que o diploma universitário foi um “desperdício de dinheiro”, em contraste com 20% dos baby boomers. A geração Z e os millennials questionam o valor do investimento na faculdade e, em resposta, muitos buscam caminhos alternativos, como cursos técnicos ou programas de aprendizagem, conforme a pesquisa da Deloitte, do mesmo ano.

Ainda sobre o ceticismo em relação à faculdade, a Deloitte aponta que um número crescente de jovens formados da Gen Z sente que a Inteligência Artificial (IA) tornou seus diplomas irrelevantes. A pesquisa do Indeed corrobora esse sentimento, com 45% dos jovens da geração Z dizendo que a IA tornou seu grau acadêmico irrelevante, ante os 30% dos formados. 

No entanto, o especialista em tendências de carreira na Indeed, Kyle M. afirma à Fortune que está crescendo o número de profissionais com diploma que questionam o retorno sobre o investimento. O custo médio de um bacharelado dobrou em duas décadas, ultrapassando 38 mil dólares, e a dívida estudantil total se aproxima de US$ 2 trilhões. Além disso, 38% dos jovens se sentem mais limitados pelos empréstimos do que impulsionados pelo diploma em suas carreiras. A Geração Z busca uma conexão mais clara entre o investimento na educação e os resultados alcançados. O longo caminho até encontrar valor em um diploma, que em áreas como psicologia e filosofia pode levar mais de 20 anos para se pagar, confronta o mercado de trabalho instável.

UTILIZAÇÃO DE IA
Não Declarado

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Luiza Virgilio Chucre