quarta-feira

4-junho-2025 Ano 1

A vida durante a ditadura militar no Brasil 

“Não tome o meu testemunho como um testemunho verdadeiro da história. A pior história não pode ser contada”
Marijane Vieira Lisboa, estudante durante a ditadura militar e, atualmente, estudiosa do período 

Por Beatriz Borba, Giovana Navarro, Laís Bamonte, Letícia Machado e Maria Eduarda Padovani

Já se passaram mais de 60 anos desde o golpe militar e existem histórias que não se apagam com o tempo. Elas vivem nas entrelinhas de fotografias, livros, cartas e relatos. Revisitar esse período continua sendo imprescindível para compreender os efeitos de tamanha repressão, censura e resistência vividas. O filme Ainda Estou Aqui (2024), dirigido por Walter Salles e inspirado no livro de Marcelo Rubens Paiva, relembra a trajetória de uma entre tantas famílias que sofreram nas mãos do regime durante a ditadura militar.

Inspirada em Ainda Estou Aqui, esta reportagem traz uma série de recortes do que foi esse período doloroso e repressivo no Brasil, iniciado em 1964, por meio de entrevistas com vítimas e especialistas de diferentes áreas, idades e vivências. Esse material, reunido, apresenta uma perspectiva sobre o que significava viver em um regime autoritário. Muitas pessoas, assim como Eunice Paiva, tiveram de se reinventar para sobreviver em meio à tirania do regime militar. 

Os primeiros anos da ditadura militar

O primeiro contato de João Roberto Martins Filho com a ditadura militar foi de maneira habitual e simplória: lendo relatos nos jornais com seu pai. “Quando houve o golpe, eu não tinha nem entrado no ginásio, mas percebi que tinha acontecido alguma coisa. Ouvia relatos de conflitos no centro da cidade em Campinas, que estava longe de ser um dos grandes centros políticos do país.”

João era uma criança na época em que houve a primeira ruptura do governo, marcada pela edição do Ato Institucional 5, quando o regime militar radicalizou. Foi uma espécie de golpe dentro do golpe. Todas as instituições liberais que estavam funcionando foram anuladas. “Aí eu já tinha 15 anos e meio, então eu já lia jornais. Meu pai era juiz e chegava do trabalho com jornais debaixo do braço. Eu sentava do lado dele e lia o jornal Folha de S.Paulo. Então eu sabia que já estava havendo conflitos”, lembra. 

Nos primeiros anos, ainda pairava um clima de incerteza sobre o golpe e a repressão. Poucas eram as pessoas que realmente compreendiam o que estava acontecendo, o que era normal. A repressão só foi notada mais tarde para aqueles que não viviam nos grandes centros ou não participavam de movimentos políticos. João acrescenta: “Não sabíamos muito bem o que iria acontecer, mas o regime realmente fechou e se implantou em dezembro de 1968. No final de 1969, começa a haver ações armadas e o sequestro do embaixador dos EUA (Charles Burke Elbrick). Depois do sequestro, que foi uma humilhação para o regime militar, a repressão passou a ser muito mais dura”.  

Em 1976, João Roberto Martins Filho ingressou no curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Hoje, é professor titular-sênior do Departamento de Ciências Sociais da UFSCar. Conheceu a ditadura em profundidade, o que o fez escrever livros sobre o período: Movimento estudantil e ditadura militar e Segredos de Estado: o governo britânico e a tortura no Brasil.  

Fotos de estudantes durante protestos.
Foto: Maria Eduarda Padovani/Agenzia, tirada no Memorial da Resistência

A jornalista Jan Rocha lembra das dificuldades e incertezas que o cenário da ditadura militar provocou, especialmente por ser estrangeira e desconhecer a censura que impactou os meios de comunicação do Brasil para o exterior. “Quando cheguei estava boiando, porque tinha pouca gente para consultar e muita censura, era a maior dificuldade para saber o que realmente estava acontecendo. Tinha um tempo que muitos jornais estavam muito censurados”, disse ela, fundadora da ACE (Associação dos Correspondentes Estrangeiros) e nascida na Inglaterra. Jan veio ao Brasil em 1969, onde foi correspondente da rádio BBC e do jornal The Guardian. Conseguiu enviar para o exterior notícias sobre a violência e a censura praticadas pela ditadura militar brasileira.  

Ao contrário do que muitos pensam, a ditadura militar brasileira não foi algo homogêneo, mas teve diversas faces e períodos no seu desenrolar. Segundo Giovanni Rickens Felippi, historiador pela Universidade de São Paulo (USP) e especialista em história cultural da ditadura militar, essas fases foram marcadas por disputas internas entre os próprios militares e projetos distintos. Assim, as vivências e percepções dentro desse espaço acabam por variar muito por diferentes fatores, como a classe social, grupo político pertencente e do momento histórico. “Quando pensamos em ditadura, a gente costuma pensar em uma coisa única, mas é sempre importante saber diferenciar. Qual época da ditadura estamos falando para fazer essa reflexão? Qual a repressão presente? De que grupo estamos falando?”, explica ele.  

A violência dos anos 1970 

Marijane comenta que quando foi condenada, junto de duas amigas, por estar colaborando para derrubar o regime, ficaria na prisão por seis meses. Entretanto, apenas um ano e meio depois, o advogado entrou com um pedido de libertação condicional junto ao Tribunal Militar. “Para nós, foi uma surpresa que o juiz aceitasse, porque quando nós começamos a falar ‘não é nada disso, nós fomos torturadas’, normalmente eles diziam para o escrivão ‘suspende’, mas ele falou ‘escreve’ (…) o advogado escolheu a dedo: três mulheres, não homens, que não tinham quase nada contra a gente, a não ser que nós fomos presas juntas daquela vez. Portanto, não oferecemos perigo, tínhamos 20 anos de idade, três moças”.  

Mais do que uma estudiosa do período ditatorial, Marijane Vieira Lisboa é também uma vítima da ditadura militar. Graduada em Sociologia pela Freie Universitat Berlin e doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica (PUC), ela sentiu na pele o que foi a ditadura militar no Brasil. “Eu tenho uma certa irritação quando as pessoas falam assim: ‘ditadura civil-militar, porque não seria possível uma ditadura sem um apoio civil’, isso é óbvio, sociologicamente não há grupo que esteja no poder sem ter o apoio social, mas ela foi uma ditadura explicitamente militar, ela teve características militares o tempo todo. Ela excluiu os civis”. 

Ela e as amigas foram soltas. Sua mãe, a mãe de uma das amigas e o advogado foram buscá-las, mas quando as três já estavam no carro, foram barradas. “Nós fomos retiradas a força de dentro do carro do nosso advogado. Ele foi jogado no chão, a minha mãe também e a outra desmaiou. Puseram um capuz e fomos conduzidas a algum lugar de novo. Fomos para a Polícia do Exército (PE)”, lembra Marijane. Destino: Polícia do Exército do Rio de Janeiro, na rua Barão de Mesquita. “Era o pior centro de tortura na época.” 

A socióloga explica que não teve medo de ser torturada, afinal elas já estavam presas há mais de um ano, então não havia mais o que extrair delas. Entretanto, o medo era outro: temia ser assassinada. Posteriormente, foram levadas para uma delegacia no subúrbio do Rio de Janeiro e mantidas lá. Elas acompanhavam a própria história pelos jornais, porque a censura não era completa.  

Foto de como eram as camas nas prisões durante a ditadura.
Foto: Maria Eduarda Padovani/Agenzia, tirada no Memorial da Resistência

Ela começou a receber cartas da mãe. Certo dia, um delegado entregou uma delas, permitindo que respondesse, desde que não revelasse seu paradeiro. Assim, Marijane descrevia o que via da janela da cela. Diariamente, a mãe ia ao Exército, mas os militares negavam as prisões, alegando que as filhas haviam sido sequestradas por amigos. Contudo, a vigilância brandado Exército falhou, e uma das cartas liberada. Com essa prova, a mãe procurou um advogado, que, então denunciou a prisão das meninas pelo Exército no Superior Tribunal Militar. “Nós vamos soltá-las, mas depois que elas saírem, vocês escondam essas meninas, porque nós não garantimos mais nada, o nosso objetivo é apenas a nossa autoridade ser respeitada”, disseram os militares ao advogado das meninas.  

As jovens conseguiram ir para casa, porém uma semana depois foram presas de novo. “Nessa hora eu pensei em me suicidar, pedi para ir ao banheiro e eles deixaram. Olhei para alguns remédios: ‘e se eu tomar não sei o quê aqui?’. Mas aí, eu falei ‘vou apostar de novo, porque se eu me suicidar, já me suicidei, se eu for para lá, pode ser que eu sobreviva, pode ser que eu não sobreviva, vamos arriscar’. Saí”, diz Marijane ao relatar o que sentiu ao ser presa novamente pelo regime. 

Uma pessoa próxima da mãe de Marijane tinha um envolvimento com o Secretário de Segurança do Rio de Janeiro, o qual controlava o Dops (Departamento de Ordem Política e Social). Por meio dessa conexão, ela solicitou para que soltasse as três moças. Elas foram libertadas, escoltadas pelas famílias e pelo advogado. Pouco depois receberam uma ordem do advogado para que fossem ao Chile: “Olha, eu já arranjei duas casas para vocês ficarem, porque não dá mais, vocês vão ser presas de novo”. Um governo de esquerda, de Salvador Allende, havia sido eleito no Chile, então o advogado de Marijane sugeriu pedir asilo lá. 

As três moças entraram disfarçadas na embaixada e permaneceram por cerca de dois meses. Chegaram ao Chile e começaram uma nova vida. Tiveram que sair em 1973, quando ocorreu o golpe do governo de Salvador Allende. Desta vez, Marijane foi para a Alemanha e lá permaneceu até 1979, quando veio a anistia.  

Movimentos estudantis  

Em 1977, durante um protesto, estudantes marcaram uma passeata no centro de São Paulo. Jan Rocha estava presente. “Os estudantes marcaram um encontro no início da rua 25 de Março. A polícia sabia e, lá na praça do início da rua, se montou um enorme esquema de policiais, cavalos, brucutus, armas e cachorros. Tinha um grupo pequeno de estudantes, rolou um confronto. No início, os estudantes estavam apavorados com aquele aparato todo e ficaram um olhando para o outro. Esse monte de policiais armados e um grupinho de estudantes indefesos”, lembra ela. 

A jornalista conta que estava com a imprensa, quando de repente um dos estudantes gritou “viva a liberdade” e todos começaram a correr pela 25 de Março, inclusive a polícia, que foi atrás para bater nos estudantes. “Depois disso, começaram a jogar gás e o centro da cidade ficou cheio dele. Eu e outro correspondente da Associated Press ficamos meio perdidos no meio das nuvens de gás e fomos até esse grupo perguntar para onde tinham ido os estudantes. Em resposta, o oficial tirou o spray de gás lacrimogêneo e jogou na cara do meu colega. Quando vi isso, comecei a correr, mas ele correu atrás de mim e jogou o gás diretamente na minha cara. É uma sensação horrível de queimação. Esse foi outro momento que lembro muito bem”. 

Cartaz referente aos movimentos estudantis.
Obra referente aos movimentos estudantis, tirada no Memorial da Resistência. Foto: Maria Eduarda Padovani/Agenzia

Assim que ingressou na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Marijane entrou em contato com um grupo político clandestino, já que os movimentos de esquerda haviam se tornado ilegais.  Ela fazia parte de movimentos estudantis e relata ter participado de greves contra a Lei Suplicy. “Fizemos uma greve grande para não pagar mensalidades, muitas manifestações na rua e os movimentos estudantis foram crescendo cada vez mais”. Essas manifestações estouraram no mundo inteiro. No Brasil, foram causadas principalmente pela morte de um jovem secundarista no Rio de Janeiro, “uma manifestação que fizeram contra o fechamento de um restaurante universitário e a polícia, com a sua truculência proverbial, atirou no estudante Edson Souto, que acabou falecendo”. 

Prisões, assassinatos e torturas continuavam acontecendo. Os corpos estavam escondidos e muitos não foram encontrados até hoje. Outros eram entregues à família, mas os caixões eram lacrados, para não constatar as torturas. Geralmente, apenas os que eram de famílias importantes, eram entregues. “Essas pessoas são as verdadeiras testemunhas, sabem o que foi morrer na tortura. Eu não sei, eu sobrevivi”, conta Marijane. 

O papel da imprensa na ditadura militar

Por estar inserida no meio jornalístico, Jan Rocha conta um pouco sobre sua experiência direta com a censura na imprensa durante a ditadura, que foi sistemática e rígida. Censores do governo eram enviados às redações para revisar e cortar qualquer conteúdo considerado subversivo, crítico ao regime ou que pudesse “ameaçar a ordem”. Ela menciona o Estadão, que publicou por um tempo receitas e poesias em vez de matérias – uma maneira silenciosa de criticar e mostrar que estava sendo censurado.  

Jornalista Jan Rocha posando para foto em seu escritório.
Jan Rocha em seu escritório. Foto: Acervo Pessoal

Em seu relato, conta que na redação da Globo, no Rio de Janeiro, existia um telex com todos os assuntos que não poderiam ser mencionados em quaisquer áreas, de política e economia, até saúde e lazer. Segundo a jornalista, a maior dificuldade dos correspondentes era conseguir as notícias e publicá-las. “O governo baixava decretos, dava coletivas, mas era sua versão da história. Nossa obrigação era tentar descobrir o que de fato estava acontecendo. Eu diria que isso foi o principal problema: conseguir saber o que rolava com o Brasil durante a ditadura.”

Durante o governo de Humberto Castelo Branco, um dos militares que articulou o golpe de 1964 e construiu toda a base constitucional-legal da ditadura, era praticada a autocensura nos ambientes jornalísticos, onde os jornais eram incentivados a praticá-la. A ideia era que os próprios veículos julgassem se o que foi escrito se enquadrava ou não na Lei de Segurança Nacional.  

Com o endurecimento do regime, especialmente após 1968, a censura passou a ser mais forte e direta, chegando a afetar até veículos que de início apoiaram a ditadura, como a TV Globo, Folha de S.Paulo e o Estadão. “De qualquer forma, a ditadura sempre tentou manter uma relação mais ou menos pacífica de convivência com esses grandes conglomerados jornalísticos, por que a imprensa continuava sendo um braço direito do governo e parte do público se identificava com as medidas econômicas que o governo tomou. Com jornais estudantis ou alternativos não tinha conversa, qualquer coisa que fosse considerada contra o governo era censurada sem mais nem menos”, explica Giovanni. 

Por conta da censura nos principais canais de comunicação, muitos brasileiros foram afetados. A pouca circulação de informações sobre o regime, os sequestros e as torturas fizeram com que muitos brasileiros não acreditassem no que estava acontecendo. “Na minha casa a política era importante, mas a experiência da maioria da população foi diferente da minha, porque eu vinha de uma família de classe média, onde se lia muito, onde tinha muito livro, e meu pai não me proibia de ler os jornais, pelo contrário. A grande parte da população nem sabia o que estava acontecendo. Mesmo na minha família, havia tios, etc, que não acreditavam que havia tortura. Então, nessa época, havia uma desinformação muito grande”, conta João Roberto.  

Segundo Giovanni, a repressão mudava de acordo com cada grupo e localização geográfica. Por exemplo, o impacto que as regiões interioranas e periféricas sentiam com o regime não era da mesma natureza que as regiões mais centrais notavam. “Ao contextualizar a ditadura, precisamos ver diversos ângulos e fazer diversas classificações para saber de qual grupo social, de qual particularidade e de qual região estamos falando”, lembra o especialista.   

A censura disfarçada nos veículos jornalísticos foi determinante para despertar a leitura crítica de muitos. A verdade nem sempre estava clara ou escancarada, era preciso ler as entrelinhas. “Em 1972 um fato marcante foi quando a revista Veja noticiou nas entrelinhas – estávamos acostumados a ler nas entrelinhas, não aquilo que estava escrito, mas o que estava implícito, insinuado na matéria – a morte de Carlos Lamarca. A matéria da Veja era tão inteligente, que quando ele foi assassinado, essas palavras não apareciam evidentemente. Eu me lembro que conversando com os meus amigos de 18 e 19 anos, a gente falou ‘olha, essa matéria está praticamente dizendo que ele foi executado”, lembra João. 

Na época, jornais universitários e alternativos foram fundamentais para denunciar o governo ditatorial. No entanto, essa parte da imprensa foi uma das principais afetadas pela censura. “Com jornais estudantis ou alternativos não tinha conversa, qualquer coisa que fosse considerada contra o governo era censurada sem mais nem menos”, acrescenta Giovanni.  

Já na universidade, João conheceu diversos veículos alternativos de comunicação. Entre eles, destaca-se o jornal Opinião. “Tinha vinte e quatro páginas no formato tabloide. Todas as linhas de esquerda estavam lá, desde o Fernando Henrique Cardoso, até o PCdoB (Partido Comunista do Brasil), que era clandestino”. O jornal tinha apoio do partido democrata, inclusive dos Estados Unidos, que segundo João era uma ótima fonte de informação. “Eu me lembro muito bem, eu via a capa do jornal, depois eu virava para a segunda página e lia da segunda até a vinte e quatro”, conta. 

Foto tirada durante a assembleia dos trabalhadores metalúrgicos.
Assembleia dos trabalhadores metalúrgicos. Crédito: João Roberto Martins Filho. Foto publicada em “Em Tempo”, jornal que João Roberto atuou como fotógrafo

A marca da violência na vida dos brasileiros 

Gráfico que exibe o número de torturados durante a ditadura no Brasil por idade.
Número de torturados durante a ditadura, por idade. Foto: Maria Eduarda Padovani/Agenzia, tirada no Memorial da Resistência

Algumas das experiências mais marcantes do professor João Roberto Martins Filho estão centradas na vida universitária. Apesar de a Unicamp ficar no interior paulista, ela não ficou de fora da dura repressão, das tragédias e da hostilidade. “No primeiro ano do curso de ciências sociais da Unicamp, morreu um estudante da USP, chamado Alexandre Vannucchi Leme, que estudava geologia. Vannuchi foi preso, torturado e morto nos atos. Como ele tinha uma família católica muito importante de Sorocaba, conseguiu que um cardeal de São Paulo oficializasse uma missa. Mas tinha que obrigatoriamente ficar dentro das quatro paredes. Eu e meus colegas saímos de Campinas e fomos assistir a essa missa”, relembra João. 

Vladimir Herzog, importante jornalista dos anos 1970 e filiado ao PCB (Partido Comunista Brasileiro), foi levado pelos militares em uma sexta-feira (25 de outubro de 1975). No dia seguinte, o jornalista foi morto sob tortura. Na época, a versão oficial apresentada pelos militares foi que Vlado havia se enforcado na cela, o que foi desmentido posteriormente. “Todo mundo começou a pensar que se um jornalista famoso pudesse ser torturado e morto, o que não pode acontecer com outras pessoas?”. 

Em 1975, João criou um jornal chamado O Clarim, onde foi noticiado a missa de sétimo dia de Vlado. “Eu estava vendendo o jornal em um bar e uma pessoa falou: ‘como vocês conseguiram, noticiar isso?’ e eu falei ‘ah, é a nossa função’. Ele riu, porque era jornalista do Estado de São Paulo. No dia seguinte, deu uma nota sobre o nosso jornal, o que para nós foi uma glória”. O jornal da Associação Brasileira de Imprensa também os noticiou, falando sobre o que havia de novo na imprensa alternativa. Após esse acontecimento, pouco a pouco o movimento estudantil começou a reagir e surgir novamente. 

Quando questionado se havia percebido alguma mudança na forma de ensinar e na “filtração” de conteúdos durante sua juventude na época da ditadura, João relatou que um de seus professores havia sido chamado para depor por conta de suas aulas. “As pessoas exerciam um acerto de censura, a gente sabia que não podia falar. Uma vez, um professor meu da Unicamp chamado Roberto Gambini, de repente mudou completamente, parecia outra pessoa. A aula dele era uma festa, de repente ele virou um cara sombrio. A classe parou para discutir com ele, que então falou: ‘Olha, quer saber de uma coisa? Fui chamado para depor por causa das minhas aulas aqui na Unicamp’.” 

Como comunicadora, Jan encarou a apreensão e o clima de tensão que grande parcela da população sentia, principalmente nas grandes capitais. Ela estava presente no enterro de Vladimir Herzog e mencionou o acontecimento como um dos mais marcantes que viveu na época. “Tinha um clima de intimidação, todos estavam desconfiados. Você cuidava muito do que falava no telefone, com risco de estar grampeado. Naquele mesmo dia, quando voltei para casa, depois do enterro, recebi um telefonema anônimo de alguém dizendo em um tom meio sarcástico, ‘você já escreveu a sua matéria?’. Era uma pessoa não identificada, que sabia que eu estava no enterro e era um telefonema para intimidar mesmo”. 

Em todo Brasil, o número estimado pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo de políticos desaparecidos ou mortos pela ditadura militar é de 434 pessoas. Muitos foram torturados, de maneira física ou mental, mas as conversas não costumavam chegar neste tópico. “Conheci gente que tinha sido torturada, mas em geral as pessoas não falavam sobre isso. É muito difícil de falar sobre. Eu conhecia pessoas que haviam sido torturadas e tinham sido claramente presas”, comenta Jan. 

Cartaz referente a morte do jornalista Vladimir Herzog.
Cartaz referente a morte de Vladimir Herzog, exposto no Memorial da Resistência. Foto: Maria Eduarda Padovani/Agenzia

Abertura gradual: novas campanhas, novas lideranças 

Cartaz a favor do fim da ditadura militar, apoiando a abertura total e não apenas gradual do regime.
Cartaz a favor do fim da ditadura militar, apoiando a abertura total e não apenas gradual. Exposto no Memorial da Resistência. Foto: Maria Eduarda Padovani/Agenzia

Em 1979, durante o governo de João Batista Figueiredo, a abertura política já era uma realidade próxima dos cidadãos graças ao auxílio do governo Ernesto Geisel. O avanço de movimentos culturais e a criação de novas campanhas auxiliaram diretamente no retorno do multipartidarismo e da democracia, mesmo que de maneira lenta.  

Muitos brasileiros nunca haviam participado de eleições presidenciais devido à imposição das eleições indiretas em 1964, como foi o caso de João Martins Filhos. Surge a campanha Diretas Já para defender o direito de votar para presidente. Entretanto, o medo do retorno da intensa repressão e da restrição de direitos ainda estava no ar.  “Nessa campanha, a primeira manifestação foi em São Paulo, e todos nós professores fomos de trem até lá. Estava todo mundo no palanque, o Lula era uma nova liderança. As grandes apostas estavam ali, Tancredo Neves, Montoro, Quércia.. No dia exato em que foi feita a votação (para as eleições diretas), ela perdeu. Foi um momento de muita tristeza”, lembra João. 

O professor João destaca seu choque no dia seguinte, após a notícia da derrota da campanha. “Cheguei na aula – ensinava para adultos, entre eles operários, enfermeiros, comerciantes, trabalhadores de restaurantes, hotéis, etc. Quando cheguei na sala, falei: ‘Vamos discutir o que aconteceu ontem’, mas os alunos não sabiam o que tinha acontecido. Eu fiquei tão aborrecido com aquilo que eu falei ‘espera um pouquinho aqui que eu vou comprar um jornal’. Comprei jornal suficiente pra classe inteira e só aí eles foram ler o que tinha acontecido”. 

João fez parte do jornal Movimento, que foi popular por ser um veículo de comunicação contra a ditadura. O jornal realizou sua primeira publicação em julho de 1975, porém teve que finalizar suas atividades entre 1980 e 1981, devido ameaças e atos violentos por parte da extrema direita. “Depois da abertura surgiu um jornal mais à esquerda, chamado ‘Movimento’, o qual eu também participei. Nele, era possível falar o que você quisesse na sala de aula, embora continuássemos um pouco temerosos, por conta dos tantos anos de censura que tínhamos vivido”. 

Capa do jornal Movimento de junho de 1978 contra a censura.
Capa da edição de junho de 1978 do jornal “Movimento”

 Depois de 1977, começaram a sair livros que às vezes, eram apreendidos. Segundo João, frequentemente quando chegavam pessoas querendo comprar livros, o vendedor pensava que era da polícia. Citou também a obra Brasil: Nunca Mais, escrita por dom Paulo Evaristo Arns, um relatório feito com base nos próprios processos e que vendeu 1 milhão de cópias.   

Marijane também conta que os livros se tornaram uma questão a ser levada com maior cuidado, visto que muitos deles eram de esquerda. “Meu pai mandava a gente jogar todos os livros de esquerda pela lixeira. Minha mãe escondia os que ela mais gostava dentro das latas de farinha. Estavam lá Revolução Francesa, do Kropotkin, e os livros preferidos dela”.  

Capa do livro "Brasil Nunca Mais"
Capa do livro “Brasil: Nunca Mais”

Arte: Uma fuga da repressão

Quadros referentes à ditadura militar.
Artes referentes à ditadura no Memorial da Resistência. Foto: Maria Eduarda Padovani/Agenzia

Músicos como Nara Leão, Rita Lee, Caetano Veloso, Gonzaguinha, Milton Nascimento, Chico Buarque e muitos outros escreveram letras inteligentes e cheias de metáforas durante a ditadura para abordar temas como censura, repressão e a luta por liberdade. Conseguiam driblar a vigilância dos censores e dar voz aos sentimentos de insatisfação da população. Eram hinos silenciosos contra a ditadura que ajudavam a manter vivo o desejo de mudança. Por mais que a partir de 1968 a violência fosse mais nítida, com casos de assassinatos caindo na mídia, a maneira como foi construída uma resistência cultural foi muito simbólica.  

A jornalista Jan Rocha relembra a dificuldade que era para passar pela censura e como o sistema era rígido, especialmente com cantores e pessoas envolvidas no meio artístico. “Tudo era censurado. Lembro que para mandar as fitas cassetes para alguns programas e enviar oficialmente por uma companhia aérea, precisava passar por uma censura primeiro, que acontecia no escritório da polícia federal. Lá sempre tinha alguns compositores, porque eles também precisavam submeter a músicas às censuras. Então era um controle que tentaram fazer total, mas não conseguiram”, afirma. Ela também conta que tinha seus jeitos de burlar a censura. “Se estava mandando uma fita que achava que poderia dar algum problema, ia diretamente para o aeroporto, procurava um passageiro que ia para Londres, pedia para levar e a BBC ia receber.” 

Mesmo com o aumento da censura e da repressão, os movimentos artísticos foram os que mais tiveram um boom na época. Os artistas e as gravadoras eram grandes vendedores de discos e tinham um grande destaque no imaginário social. Dessa maneira, o regime sabia que uma repressão muito forte não seria bom para ele e nem para as empresas, porque as gravadoras vendiam muito. “Os militares eram muito estratégicos nesse quesito: não permitir qualquer coisa e ao mesmo tempo não impedir que esses grandes artistas se manifestassem.”, explica Giovanni.  

Segundo Marcos Napolitano, professor e historiador da USP, os movimentos artísticos foram importantes para manter identidades culturais e políticas de oposição. Todos eles eram baseados no antiautoritarismo, nas denúncias de injustiças, no culto às liberdades públicas e privadas e, principalmente, na juventude de classe média, maior foco de oposição à ditadura. 

“A própria MPB moderna, da qual aflorou o Tropicalismo, pode ser vista como um movimento cultural. O Cinema Novo, surgiu antes da ditadura, mas ainda vigoroso até fins dos anos 1970, é outro exemplo. O teatro também foi importante, com grupos mais voltados ao teatro realista e outros vinculados ao teatro de Vanguarda, como o Oficina.  Eu também destacaria o movimento da Nova Figuração, Nova Objetividade e o Conceitualismo nas artes visuais”, conta. 

Marcos explica como a ditadura afetou a produção de conteúdos culturais, como ela se propagou após a regime e a forma que as pessoas contra o sistema driblavam ele. Ele detalha que a censura era especialmente severa na música popular, cinema e teatro, forçando artistas engajados a usar linguagens mais  cifradas, metafóricas ou alegóricas para se expressar. “A censura estatal às artes foi abrandada a partir de 1979, mas continuou existindo até a promulgação da Constituição de 1988, quando ela foi extinta”.  

João contou sobre a época de produção de materiais culturais e o fato disso ser utilizado como “válvula de escape” por algumas pessoas. Mesmo em meio à censura, a cultura não deixou de ser produzida, ainda limitada. “Por incrível que pareça, depois do golpe militar, foi o período de maior efervescência cultural que o Brasil já teve. Os primeiros, dos anos de 1964 até 1968, foram anos de muita criação artística no Brasil. Foram os anos da Tropicália, os anos das peças de teatro, os anos de filmes, mas depois de 1968, fechou mais. Até 1968, havia um público de esquerda que utilizava aquilo como se fosse uma válvula de escape”. 

O ensino sobre a ditadura militar em escolas 

Entender o que foi a ditadura é essencial para a compreensão do que de fato aconteceu, a fim de fortalecer a democracia do país e para que o mesmo não se repita. O fenômeno de Ainda Estou Aqui, que rompeu a barreira dos 5 milhões de espectadores nos cinemas, surge para relembrar que famílias tiveram as vidas reviradas do avesso por conta do regime militar. É um fantasma que permanece rondando o País. 

Segundo Giovanni, alguns setores que organizaram o golpe e mantiveram o regime militar ainda influenciam as estruturas de poder, onde muitos militares responsáveis pelos crimes durante a ditadura não foram punidos. “De uns 10 anos pra cá, às vezes tem negado e é uma questão bem objetiva, não é uma opinião. Houve uma ditadura, um golpe e tem muita gente que tenta amenizar, mas tem questões que não alteram a natureza ditatorial”, diz. 

Para o especialista, a abordagem do tema nas escolas é de extrema importância, mas costuma ser abordado de forma rápida e superficial. “Essa pauta deveria ocupar mais espaço no colégio, porque ela aparece geralmente no final do ensino médio, em umas duas ou três aulas, de uma maneira bem genérica. Pelo menos a forma que eu estudei, hoje com historiador, eu vejo de maneira bem geral. Para ele, o tema teria que estender sua carga dentro da BNCC (Base Nacional Comum Curricular). “Mesmo com um professor dedicado e com um material didático completo, muitas vezes não tem tempo suficiente para falar sobre a cultura, política e sociedade, de fato aprofundando todos os aspectos da história”. 

João Roberto Martins Filho também criticou a falta de ensino sobre a ditadura militar em escolas da atualidade. Muitas instituições de ensino negligenciam o ensino sobre essa fase, havendo até debates sobre se deve ser ensinado ou não nas escolas. O não-ensinamento sobre a época da ditadura no Brasil omite uma parte da história do país, tudo que essa fase causou sobre muitas pessoas e os impactos negativos dela. “O mais incrível é que, ao contrário, por exemplo, da Alemanha, onde se estuda o nazismo desde o jardim da infância praticamente, aqui no Brasil não existe uma obrigação, até pelo contrário, existe uma campanha contra a discussão de política na sala de aula, que é a escola sem partido. É surrealista, porque nós nem chegamos a estudar alguma coisa e estão querendo proibir agora a gente de estudar”. 

Ainda, João acrescenta que não existe uma memória da ditadura. “O país é muito grande, o único jeito que a gente teria uma memória seria ensinar na escola, como uma coisa importante”. É evidente que relatar sobre o passado e reviver a memória das tantas vítimas do período, é o caminho ideal para aprendermos a história e, assim, não repeti-la. A sociedade precisa conhecer o seu passado para impedir que os mesmos erros sejam cometidos no futuro.   

b07

O grupo B07 é composto por Beatriz Borba, Giovana Navarro, Laís Bamonte, Letícia Machado e Maria Eduarda Padovani

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