Apesar da recomendação médica para evitar a arte, o hoje muralista, grafiteiro e designer utiliza sua condição como inspiração, provando que a paixão supera qualquer obstáculo
Por Andrey Cahim, Fábio Mansi, João Filipe, João Pedro e Thiago Aguiar
O oftalmologista que atendeu Franco Vecchioli de Lima quando criança recomendou que ele evitasse profissões relacionadas a cores. O pequeno havia sido diagnosticado com daltonismo e não enxergava as cores como a maioria das pessoas. Franco via (e ainda vê) a grama com a cor laranja e o tronco da árvore é sempre preto. Ele cresceu ouvindo piadinhas e zombarias na escola. Nada comparado ao bullying, segundo ele, mas aqueles comentários estavam presentes o tempo todo. Franco seguiu em frente e superou tanto esse quanto outros obstáculos. E, contrariando o que o médico recomendou, transformou um hobby em uma profissão e na sua maior paixão: a arte.

* Muro pintado pelo artista Franco Vecchioli de Lima em comemoração ao 367° aniversário de São Roque. O trabalho utiliza elementos turísticos, como a Igreja da Matriz , com atenção voltada para o santo São Roque, padroeiro da cidade Foto: João Pedro Cockell/Agenzia
Franco é hoje um artista visual e muralista, grafiteiro, ilustrador e designer. Sua condição faz parte de sua identidade e até serve como uma assinatura para sua arte. “Não vejo isso [daltonismo] como um problema. Vejo como um diferencial.”
Nascido em 1995, natural de São Roque, no interior paulista, o artista transformou seu jeito diferente de ver as cores em um universo criativo. O daltonismo, em vez de uma sentença, virou um ponto de partida para exercer seu dom maior sem restrições. “A arte não tem regra. Eu uso o meu daltonismo para mostrar que as pessoas podem enxergar do jeito que elas quiserem”, declara.
Na 4ª série da escola, ele e seus dois irmãos – Carina, a irmã gêmea, e Enrico, o mais velho – eram sempre incentivados pelos pais a desenharem e pintarem. Ninguém ainda desconfiava do daltonismo. Franco brinca dizendo que, desenhando, ele era o pior dos três. Gostava de ilustrar Pokémons, carros e super-heróis. Mas já os pintava com cores que fugiam do esperado. Desconfiada, sua mãe pediu, certo dia, para que ele separasse balas de goma por cores. Ela logo entendeu: “Não, espera, tem alguma coisa errada”.
Donatella Vecchioli levou Franco para o médico e depois de vários exames veio o diagnóstico do daltonismo. Àquela altura o menino persistente não iria deixar de desenhar por “recomendações médicas”. Mas ele deixou, por outro motivo. Na fase da adolescência acabou descobrindo outros passatempos que o interessavam. O basquete foi um deles. Com cerca de 1 metro e 70 de altura, logo entrou para o time de São Roque, no qual jogava, treinava e assistia jogos. Com o passar do tempo, ele foi ficando cada vez mais fascinado pelo mundo dos esportes, principalmente pelo da bola laranja – que, ele enxergava normalmente.
O jovem Franco dividia seu tempo entre família, amigos, basquete e estudos. Coisas que influenciaram sua vida artística. “É o esporte [basquete] que eu me apaixonei e o que eu mais gosto de desenhar. Eu gosto de desenhar a figura negra, de trazer isso para o meu traço, acho bonito. É onde me inspiro, gosto muito do estilo de basquete. É uma coisa que sempre vai estar presente nas minhas ilustrações”, conta.

Franco Vecchioli de Lima pintando um quadro do ex-jogador de basquete, Dennis Rodman. O quadro feito com um traço que foge do realismo, destaca a influencia que o basquete tem na vida de Franco Foto: João Pedro Cockell/Agenzia
No período dos vestibulares, o jovem foi aprovado no curso de Publicidade e Propaganda do Mackenzie. Nas aulas da universidade, voltou a se interessar mais pelo universo da arte. Mergulhou no mundo das cores, superando qualquer dificuldade. Hoje, aos 29 anos, dá aulas sobre cores, tons e a composição delas. Foi com todo esse conhecimento que descobriu que desenhar e pintar não era somente um passatempo. Era uma paixão.
‘‘Eu entrei na faculdade, tive teoria das cores e meus pais pagaram um curso de ilustração para mim. Foi aí que eu de fato saquei que isso (arte) é o que eu mais amo’’, lembra.
Em 2016, ele começou a trabalhar no ramo artístico, e, ainda com um pouco de receio, fez uma obra na parede de um escritório de contabilidade. ‘‘Ela (a parede) tinha quatro metros por dois de altura. Já tinha feito outros trabalhos, mas assim, tudo na informalidade. Eu tinha que desenhar um touro e um urso. Só tinha uma caneta. A hora que eu fiz o primeiro risco, falei: “Meu Deus, tô fodido”. Isso aqui não vai cobrir nada.’’
‘‘Fiquei três dias fazendo só risquinho na parede e a partir disso, minha mente abriu: ‘É possível’. Foi aí que eu falei: ‘Mano, só quero trampar com isso que vai ser da hora’.’’
Um ano depois, ele se formou como publicitário e concluiu cursos de ilustração. Percebeu que não precisava enxergar as cores como todos. Precisava senti-las. Entendia como elas funcionavam e via que a sua condição não o atrapalharia em nada. Parafraseando Van Gogh, Franco achava possível escutar as cores. “Tipo ouça as cores. A cor é mais que só uma pintura. É que você sente, o que a cor te passa. A cor para mim é uma coisa que faz, de alguma forma, despertar algum sentimento que tem dentro de você ou algo novo.”

Franco Vecchioli de Lima pintando um quadro de uma Arara Azul,mas da cor roxa, em seu estúdio. A obra busca criar um efeito com as cores, usando do daltonismo do artista como um ponto de partida para exercer uma arte sem restrições, transformando seu jeito diferente de ver as cores em um universo criativo. Foto: João Pedro Cockell/Agenzia
Mais trabalhos por encomenda chegaram, como quadros dos pets, quadros de jogadores de basquete (como uma entrega de uma obra do Kobe Bryant para um cliente). Decidiu criar sua própria assinatura (Franco Ilustra). Como todo artista em permanente estado de aprimoramento, passou a se direcionar para novos trabalhos.
Fez um mural no centro de São Roque para homenagear a festa tradicional da cidade, criou estampas de camisetas nas quais o daltonismo era representado no projeto (uma estampa de uma laranja, porém pintada de cor-de-rosa), fez murais para a Hershey’s – desenhou o processo do cacau até chegar a virar chocolate. Franco pesquisou tudo sobre esse assunto, buscando colocar todas as referências na obra. Desenhou pessoas extraindo o fruto, fazendo chocolate e até os provando. Esse trabalho durou cerca de 20 dias. Pintou um muro para a Honda de 250 metros quadrados no meio da Raposo Tavares – bem no meio da rodovia, em meio a caminhões, carros e buzinas. O artista realizou pesquisas para o projeto, que era sobre moto, fazendo questão de desenhá-las em direção à loja. Precisava destacar a velocidade e transmitir as mensagens que a empresa passa: paz e harmonia no trânsito. O trabalho durou quase 15 dias. “A arte transforma o dia a dia da pessoa, mesmo que de maneira inconsciente.”
Um convite especial chegou neste ano. Ele foi convidado para pintar a cascata do clube em que jogava basquete na adolescência e do local onde seus pais se conheceram – o Grêmio União Sanroquense. Franco considera esse trabalho como o mais difícil, não por conta das cores, mas por conta da estrutura. Durante 20 dias, ele subia e descia em andaimes de dois patamares, segurando tintas, pintando e desenhando em uma superfície cilíndrica e de grande escala. “Um espaço zero para trabalhar”, definiu ele. Para piorar, os andaimes estavam montados dentro da água e que, além de cilíndrica, a cascata era grande, tornando o processo de pintura caótico.
Quando contratado, Franco afirma que procura atender os pedidos das empresas. Por mais que no início ele sentisse alguma dificuldade com cores, principalmente em trabalhos digitais, ele consegue hoje sanar esses problemas. Ora recorre à ajuda de alguém ou escreve o nome das cores em suas respectivas canetas, latas ou potes de tinta.
O muralista afirma que a condição de daltonismo não o atrapalha em nada. Quando seus amigos perguntam a ele como sabe se uma obra está bonita, ele responde que enxerga igual a eles e que as cores não são determinantes para isso.

Muro da Escola Aquarela, em São Roque-SP, emoldurado por plantas. Pintada pelo artista Franco Vecchioli de Lima, a arte, apesar de parecer lúdica, destaca aspectos infantis e escolares por meio da diversidade de cores, incentivando a criatividade e o aprendizado. Foto: João Pedro Cockell/Agenzia
É claro que Franco conta com a intuição, e esta nem sempre lhe é fiel. “Antes dos trabalhos compro as tintas certas que vou usar, mas já cheguei a errar. O mural de São Roque, vou confessar, o ‘Viva São Roque’ que escrevi era para ser um marrom mais claro. Eu peguei o errado na hora e falei: ‘É esse’.”
O artista, que sempre superou as dificuldades, conta que há cores que o confundem bastante, destacando o cinza como a mais difícil de um daltônico enxergar. “Para você formar qualquer outra cor [além das primárias], você precisa de tantas porcentagens, [quantidade de tinta]. Então eu confundo muito amarelo e verde, verde e vermelho, rosa e roxo, rosa e azul e roxo e azul […]. Já confundi lilás com cinza, cinza com verde”, comenta.
Quando escolhe a paleta de cores, principalmente com tinta, Franco entende que a fase transitória de uma cor para outra é o que mais gera problemas. “Verde é formado por amarelo e azul. Você pode colocar tanta quantidade da cor azul na cor amarela e nada acontecer. Mas que vai chegar uma hora que você vai colocar muita cor azul, ele vai virar verde. Só que nessa fase entre virar verde e continuar amarelo ocorre a pior confusão para um daltônico”, explica.
A solução é se preparar com bastante antecedência antes de fazer uma obra de uma empresa ou que foi pedida por algum cliente. Ou seja, ele estuda até se sentir seguro de iniciar as pinceladas.
Em seu tempo livre, Franco Vecchioli costuma ficar com a família, treinar crossfit e natação com sua irmã. Também vive de projetar novas ideias, jogar basquete e ainda faz muitas outras coisas que são parte de sua rotina desde pequeno.
“A primeira impressão que tive dele foi um cara bem extrovertido, brincalhão, alegre e um pouquinho estressado às vezes. Nunca foi um cara recluso ou tímido, sempre extrovertido desde pequeno”, lembra Luiz Guilherme, amigo de Franco desde a sétima série.
Luiz conta que o primeiro contato com o daltonismo foi quando conheceu o artista e que isso nunca foi um problema. “O Franco é um baita artista. Ele tem coisas excelentes. Já fez trabalhos em relação ao daltonismo, algumas campanhas, algumas camisetas que ficaram incríveis. Não só pela arte, mas pela mensagem que as camisetas passam: a de acessibilidade, de mostrar que o daltonismo não é um grande problema como muitas pessoas enxergam”, afirma.
Hoje, Franco cuida e mima sua avó, Nunziata Rana Vecchioli, com quadros e carinhos e faz muitas piadas. “Não existe regra em arte. O que mais quero passar é: enxergue o mundo do jeito que quiser. Minha arte é para passar essa mensagem”

Franco Vecchioli de Lima e seu mural feito na Escola Aquarela. O mural destaca as cores a a imaginação de uma criança. Foto: João Pedro Cockell/Agenzia
Este conteúdo não demandou a Inteligência Artificial em etapa alguma do processo jornalístico.
Excelente matéria. Mostra que as dificuldades podem ser superadas na arte.