Com tensões crescentes, a disputa se intensifica e ultrapassa os limites do campo econômico
Por Felipe Camurati, Murillo Arduini, Theo Pinatto, Tiago Bertocci
Em abril de 2025, os Estados Unidos anunciaram taxações de 245% sobre produtos chineses, em tentativa de reafirmar seu lugar de destaque global. Como resposta, a China retaliou com tarifas de até 125% aos bens estadunidenses. Isso reacendeu o temor de uma nova guerra comercial envolvendo duas das principais potências da atualidade.

Foto: Eric Prouzet/Unsplash
Essa disputa não se resume a uma questão econômica, mas representa a batalha entre Estados Unidos e China pela hegemonia global. “Em vez de avançar, os EUA deram passos para trás”, diz o especialista em Relações Internacionais, Cleuber Rufino. “Ao apostar que a China recuaria diante das tarifas, os Estados Unidos acabaram prejudicando suas próprias indústrias e travando o comércio global.”
Para compreender a dinâmica dessa disputa é preciso olhar o que está ocorrendo no planeta a partir de três grandes perspectivas: a ideológica, a geopolítica e a econômica. É o que a Agenzia fará a partir de agora:
Eixo Ideológico
Norte-americanos e chineses sempre buscaram consolidar ideologias sobre seus territórios. Mas nas últimas décadas elas decidiram propagar seus ideais globalmente. Os Estados Unidos saíram vitoriosos após a Guerra Fria – um conflito ideológico contra o socialismo soviético. A crença na liberdade individual e na prosperidade através do trabalho só seria possível sem um controle estatal, defende o neoliberalismo, pensamento predominante no Ocidente. Os estadunidenses acreditam fortemente que a manutenção do modo de vida capitalista e consumista permite com que apenas os mais merecedores vão chegar lá.
Já a China avançou no socialismo com características próprias, instituído no país a partir da década de 1980, com a peculiaridade de, simultaneamente, adotar uma economia aos moldes do capitalismo. A valorização de estruturas como harmonia, unidade nacional e estabilidade também se relacionam ao pensamento chinês. Para fazer frente aos norte-americanos, os chineses apostam na multipolaridade global. O país asiático acredita que, ao descentralizar o poder e promover diversos centros de influência, o sistema internacional pode ser reequilibrado, alterando a hegemonia global estadunidense.
Iniciativas do Governo Chinês
Para competir diretamente com o domínio geopolítico estadunidense, o presidente da China Xi Jinping reforça o papel de seu país na promoção de um ideal multipolar. Segundo uma reportagem da CNN Brasil, realizada em outubro de 2024, a China possui iniciativas que buscam fortalecer nações estrangeiras como a Nova Rota da Seda, que permite a integração de diversos países com os chineses por meio da construção de ferrovias e portos que facilitam o comércio com o país asiático. Além disso, através de alianças já existentes como o BRICS, o país renova sua imagem com o resto do mundo, ganhando influência e fortaleçendo aliados.

Foto: Wilson Dias/Agência Brasil
Outra iniciativa chinesa sob regime de Xi Jinping que ganha notoriedade é a GCI (Iniciativa de Civilização Global). Criada em 2023, ela critica diretamente a hegemonia global e ideologia estadunidense baseada em três pontos principais: o respeito mútuo entre civilizações, o fim de intervenções militares justificadas sob a mentira de promover a democracia e a valorização da diversidade política e econômica. Segundo um vídeo da New China TV de abril de 2024, essa iniciativa é benéfica para a construção de um mundo pacífico e baseado no diálogo. De acordo com o Ministério das Relações Exteriores da China, já existem mais de 100 países que expressaram apoio à iniciativa.
Soft Power e o Papel Cultural
Embora as estratégias de buscar aliados e se manter ativos economicamente seja crucial para se conquistar uma hegemonia ideológica, a capacidade de conquistar as massas sociais com a cultura é um dos principais meios para suceder nesse cenário, isso é chamado de Soft Power. Nessa matéria, é possível compreender melhor sobre o aumento da popularidade de elementos da cultura oriental no Brasil. Os Estados Unidos conseguem influenciar as pessoas por meio de elementos culturais há décadas, com a disseminação do american way of life.
No entanto, a China vem aumentando sua presença no setor, especialmente no governo de Xi Jinping. Segundo o portal Exame, os chineses se tornaram o maior centro cinematográfico no mundo e é detentor do maior estúdio de cinema do planeta. Os resultados que a China atingiu são notórios, como o filme “Ne Zha 2”, que em poucos dias se tornou a animação de maior bilheteria da história, superando “Divertida Mente 2”. Isso comprova que o Soft Power chinês está permitindo com que o país compita diretamente com os Estados Unidos.
Eixo Geopolítico
O Produto Interno Bruto (PIB) dos Estados Unidos, no ano de 2023, foi de US$ 27,8 trilhões, o maior do mundo, seguido pelo da China, o equivalente a US$ 17,8 trilhões. O Liberation Day, dia do tarifaço de Donald Trump, representou mais um movimento do presidente dos Estados Unidos em não permitir que a economia do país oriental se aproxime demais. Daí a ideia de transmitir um recado global, mas com alvo bem definido.

Foto: Isac Nóbrega/Agência Brasil
“Hoje a comunidade internacional já entende que são ameaças e que nem sempre são cumpridas de acordo com o país com que ele negocia, que foi o caso da China”, afirmou o professor Cleuber Rufino, da Universidade de Ribeirão Preto (Unaerp).
É aí que entram os países emergentes na Nova Ordem Mundial. Ao fundar o Brics+, a China se colocou em uma posição vantajosa para a captação de commodities, espaço de hegemonia global antes ocupado pelos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Mundial e que chegou a ser disputado pela União Soviética durante a Guerra Fria.
O Brics+, composto por África do Sul, Arábia Saudita, Brasil, China, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia, Índia, Irã e Rússia, se tornou um bloco econômico com margem de negociação na economia mundial, e esse movimento incomoda os EUA que são obrigados a criar planos para retomar a posição de absoluta potência global.
Eixo Econômico
É no aspecto econômico que a disputa entre China e Estados Unidos enfrenta sua situação mais sensível e estratégica. Para Alex Ferreira, professor da Universidade de São Paulo (USP), ao impor tarifas gerais, Trump não conseguiu o que mais queria, uma decapitação dos outros países. “Não se trata apenas de impor sanções e esperar respostas lineares. O comércio global está profundamente interligado. “Quando um elo é afetado, toda a cadeia se ajusta”, afirmou. Ferreira afirma que, ao mirar a China, os EUA atingiram, também, parceiros e empresas multinacionais que operam nos dois países, como é possível observar no vídeo de Thiago Nigro, O Primo Rico.
Corrida Tarifária
Segundo Cleuber Rufino, a corrida tarifária faz parte de uma visão equivocada dos EUA sobre sua capacidade de pressionar a China. “Trump acreditava que as tarifas forçariam a China a recuar, mas o efeito foi o oposto. A China buscou diversificar seus mercados e investir em inovação. Os EUA, ao tentar conter a ascensão chinesa, acabaram prejudicando suas próprias cadeias produtivas e indústrias exportadoras”, analisa.
A estratégia tarifária, segundo os especialistas, contribuiu para um aumento de preços, especialmente em setores como o da tecnologia. Reforçou ainda o sentimento nacionalista chinês, com campanhas públicas exaltando a resiliência econômica do país frente à pressão ocidental. Não só da China, mas de diversos países que também foram afetados pelas ações agressivas de Trump, como o Canadá. O país vizinho incrementou sua prática de colocar no rótulo de seus produtos quais são canadenses e quais são estadunidenses, com o intuito de mobilizar a população.

Foto: Aaron Burden/Unsplash
Domínio do Dólar e Avanço do Yuan
O dólar prossegue como a principal moeda do comércio internacional, e não há sinais de que o yuan vá superá-lo no curto prazo. Ferreira destaca que a moeda chinesa vem conquistando espaço, especialmente entre países emergentes, que buscam alternativas ao dólar e à hegemonia global estadunidense. Ele cita, como exemplo, os acordos firmados entre China e Rússia que fez com que as transações passassem a ser feitas em moeda chinesa. O Brasil fez um acordo em 2023 que permite transações comerciais diretas entre o real e o yuan, sem a necessidade de intermediação pelo dólar.
A China já responde por mais de 30% das exportações brasileiras. Mas ainda enfrenta limitações estruturais. “O yuan é uma moeda controlada pelo governo chinês, com câmbio não totalmente livre. Isso gera desconfiança no mercado financeiro global. Já o dólar, com toda sua tradição, liquidez e estabilidade, ainda é a referência mundial”, diz Ferreira.
Por viver uma fase prolongada de crescimento econômico, a China tem investido de forma maciça em setores como inteligência artificial, energia verde, infraestrutura tecnológica e produção industrial de alto valor agregado. Parte dessa estratégia passa pela aproximação com os países do Sul Global por meio de grandes investimentos e acordos comerciais.

Foto: Aboodi Vesakaran/Unsplash
“Há uma disputa de longo prazo sendo travada aqui. A China está tentando redesenhar a ordem econômica global, mas os Estados Unidos ainda têm a maioria das estruturas financeiras globais, como FMI, Banco Mundial e a própria força do dólar”, diz Cleuber. Ferreira complementa, afirmando que os próximos anos serão decisivos para ver se o avanço do yuan conseguirá vencer a resistência do sistema financeiro internacional e conquistar maior confiança global.
A tensão entre as duas maiores economias do mundo também traz consequências diretas para países emergentes. A alta nos preços de produtos, a volatilidade cambial e a incerteza nos fluxos de investimento externo afetam especialmente economias que dependem de exportações e da confiança externa de investidores estrangeiros. Ferreira alerta que o embate sino-americano vai além dos dois países. Ele muda o cenário da hegemonia global e impõe desafios para nações que não têm grande poder monetário e confiabilidade externa, se tornando reféns desta disputa – senão marionetes.