terça-feira

21-outubro-2025 Ano 1

Quando uma IA cria uma banda-fantasma decreta o fim dos artistas?

A criação de canções com inteligência artificial já é uma realidade e parece não haver freio para uma indústria que se habituou a explorar os artistas de carne e osso

Por Gabriel Izidro, Lucas Ohara, Pedro Nogueira e Raul Groff

Era julho de 2025 quando The Velvet Sundown, do nada, protagonizou discussões e manchetes acaloradas no mundo da música. O quarteto até então desconhecido parecia predestinado a um súbito estrelato. Mas a verdade é que essa banda não possuía integrantes ou produtores. Nem mesmo poderia ser chamada de banda. Tudo nela era fake, a começar de suas músicas que foram criadas com Inteligência Artificial (IA). O caso gerou polêmicas por uma razão que mataria de inveja muito artista: o projeto alcançou um milhão de ouvintes mensais na plataforma de streaming Spotify.

O advento da IA tem possibilitado a simplificação e agilização do processo criativo em diversas indústrias. A música não ia ficar de fora. Em um segmento complexo, que mistura o conhecimento técnico e a intuição artística, os impactos são de outra grandeza. Há um número desconhecido de novas gravações disponíveis online e que foram criadas por modelos treinados em catálogos existentes. Em bom português, plagiadas. Num curto período de tempo, esse movimento deixou de ser um experimento nichado para se tornar o mais grave problema para os artistas e ouvintes: faixas geradas por IA proliferam nos serviços de streaming, sem identificação apropriada ou regulamentação. 

Segundo um estudo da empresa de dados Luminate, a quantidade de músicas publicadas em serviços como Spotify, Apple Music e Tidal em 2024 duplicou em relação a 2018, chegando a aproximadamente 32 milhões de uploads. A própria plataforma de streaming Deezer afirma que, neste ano, cerca de 18% das faixas novas lançadas em seu catálogo foram feitas com IA. Essa tendência já influencia o funcionamento dos algoritmos de recomendação, com o senão de que reduzem a visibilidade de artistas humanos.

Artistas e produtores questionam o crescimento desproporcional das “bandas IA”. Em uma nota divulgada no Twitter/X, a banda de rock Holding Absence, originada em Cardiff, no Reino Unido, protestou a existência do “grupo” Bleeding Verse. Trata-se de uma banda de fachada, cujas músicas são 100% geradas de forma automatizada. O grave é que possuem questionável semelhança estilística e sonora com as composições criadas pelos integrantes do Holding Absence. “É insultante”, afirma o vocalista. “Oponham a música IA, ou bandas como nós deixarão de existir”, ele adiciona. Para muitos, a produção generativa remete à transformação “fast food” de trabalhos culturais na era digital.

O processo é simples e pragmático: programas de código aberto ou interfaces comerciais permitem a criação de músicas em poucos minutos, muitas vezes sem nenhuma intervenção humana. O resultado são milhares de faixas de semelhante teor musical, distribuídas de modo automático para plataformas, ocupando espaço em playlists e catálogos antes reservados à divulgação de artistas independentes. Trata-se de uma mudança radical nas estruturas do setor, em que a música, tradicionalmente associada à experiência humana e a criação artística, é transformada em um produto industrial e automatizado. As consequências do uso da IA na música são variadas, complexas e, em alguns casos, desconhecidas.

Os artistas

Em entrevista à Agenzia, o músico e produtor Pipo Pegoraro, vencedor do Grammy Latino 2023 pela sua produção no álbum Em Nome da Estrela, de Xênia França, afirmou que vê a IA pode potencializar o surgimento de novas músicas e, de tabela, facilitar o acesso às ferramentas de criação sonora. “Toda ferramenta de acessibilidade é sempre bem-vinda, ainda que pelas possibilidades criativas. Mas, pelo lado negativo, a qualidade das músicas pode decair através da superprodução.  Além, claro, do risco de plágio”, resumiu. 

Pipo vê, e sente no bolso, a consequência da proliferação do uso da IA no mercado musical. Acostumado a produzir muitas trilhas e muitos temas sonoros, ele afirma que essas encomendas desapareceram – enquanto as peças e obras que as reproduzem continuam a ser lançadas no mercado. Ou seja, o seu trabalho já foi substituído por uma ferramenta de inteligência artificial. “Também percebo que houve uma perda de qualidade nos temas e trilhas, pois a máquina não consegue interpretar a obra. Ela apenas segue seu banco de dados, e isso me deixa triste”, lamenta. 

O produtor não descarta que algumas de suas músicas já circulem modificadas ou tenham sido usadas como base de treinamento para modelos de inteligência artificial, embora não possa comprovar isso. Por isso, ele defende a regulamentação do setor. “Com algumas normas legais estabelecidas, poderíamos saber quando algo é retirado ilegalmente da internet. Mas como a IA não nos dá as fontes, não podemos acusar ninguém. Minhas músicas estão na internet, é muito fácil o acesso. É complicado acusar, mas se realmente houver esse tipo de plágio, é muito provável que minhas obras tenham sido utilizadas.”

Fundo azul com linhas e pontos brancos, representando as redes comunicativas da tecnologia.
Fundo azul com linhas e pontos brancos, representando as redes comunicativas da tecnologia. Foto – Conny Schneider/Unsplash

As preocupações da indústria

Não é segredo para ninguém que os modelos de IA, capazes de criar produtos de grande semelhança aos criados por artistas humanos, são treinados em dados não licenciados retirados de agregadores de músicas e outros datasets disponíveis online. O movimento já é visto como um risco à indústria. Em 2024, gravadoras e distribuidoras grandes, como a Universal Music Group, iniciaram processos contra empresas de inteligência artificial, alegando violação dos direitos autorais no processo de treinamento das máquinas. Essas disputas, ainda em andamento, prometem definir as bases jurídicas que irão condicionar as regras da IA generativa.

A organização de gerenciamento musical sueca Stim oferece uma possível solução: um sistema de licenciamento semelhante ao já estabelecido pelos serviços de streaming de filmes e TV, no qual os detentores dos direitos receberiam compensações pelo uso de suas gravações como dados de treinamento. Porém, existe uma grande divergência nas opiniões da indústria em relação ao enquadramento do treinamento de modelos de inteligência artificial nos moldes existentes. É cópia? Uso indevido? A rotulagem abre margem para interpretações legais diferentes, o que torna o problema ainda mais complexo.

As plataformas de streaming

Responsáveis pela curadoria e pela moderação do conteúdo publicado, os serviços de streaming, hoje os intermediários diretos entre o público e a produção musical, dizem ter dificuldades em identificar material gerado por IA. Em muitos casos, as plataformas dependem de denúncias de usuários ou de artistas afetados para identificar uma faixa gerada por inteligência artificial. 

Na ausência de sistemas de detecção robustos, práticas fraudulentas são estabelecidas, como o upload automatizado de milhares de músicas quase idênticas para inflar reproduções e capturar parte da receita de royalties. Esse tipo de manipulação afeta em particular músicos independentes, que veem sua visibilidade (e possibilidade de crescimento) reduzida por algoritmos que priorizam o volume massivo de engajamento. Em resposta, algumas empresas já começaram a implementar políticas de rotulagem e restrições ao envio de conteúdo. Em setembro de 2025, o Spotify anunciou que deletou mais de 75 milhões de faixas automatizadas no último ano, e que vai introduzir novos filtros para identificar e restringir conteúdo “spam”, após enorme pressão de seus usuários devido a sua posição neutra mantida por muito tempo.

Rosto humano estilizado como a placa-mãe de um computador.
Rosto humano estilizado como a placa-mãe de um computador. Foto: Steve Johnson/Unsplash

A “produtoficação” da música

Outra questão paralela que polariza (e antecede) a discussão sobre a criação de músicas sem envolvimento humano é a possibilidade de ganhar dinheiro nos serviços de streaming. Artistas independentes têm como ressalva, há anos, a desigualdade na receita proveniente destas plataformas. O Spotify paga menos de um décimo de centavo de dólar por streaming, o que dificulta a vida dos criadores que não possuem milhões de ouvintes. Um jeito de burlar o sistema é o uso de bots que escutem músicas em loop para inflar o número de ouvintes – este processo foi impulsionado, claro, com o crescimento de ferramentas de IA, já que a criação de músicas para serem fraudadas é mais fácil que nunca.

Em setembro de 2024, o estadunidense Michael Smith foi indiciado por fraude após criar centenas de milhares de músicas com IA e utilizar programas para gerar visualizações, arrecadando mais de 10 milhões de dólares em pagamentos de royalties, de acordo com o FBI. Esse foi o primeiro caso criminal relacionado à criação automatizada de músicas, e, seguindo relatos de usuários de serviços de streaming, não será o último.

A jornalista Liz Pelly, em seu livro Mood Machine, revelou uma iniciativa do Spotify intitulada “Perfect Fit Content”, ou Conteúdo de Encaixe Perfeito. Artistas eram contratados para a produção de músicas em massa para alimentar as playlists criadas pela plataforma. Essa prática começou em 2017, utilizando mão-de-obra humana – com a introdução das primeiras ferramentas generativas. 

O mundo algorítmico

Em 2024, a revista Galáxia publicou um estudo sobre a educabilidade algorítmica e o que os autores intitulam de “escuta datificada”. A lógica imposta pelos mecanismos de sites de streaming reconfigurou o consumo de música pelo simples fato de terem se tornado especialistas em entregar conteúdos personalizados e bem ao gosto dos usuários das plataformas. “Com a noção de ‘cultura do acesso’ que as plataformas de streaming de música oferecem, o modelo de negócio dessas empresas migrou para uma lógica baseada na curadoria e personalização das entregas”, descreve o artigo.

A produção de músicas por IA ocorre por meio da chamada datificação, com a coleta de dados para a execução de um produto final ‘ideal’, que satisfaça perfeitamente a audiência específica. É um sistema que se retroalimenta a partir da vida humana sendo transformada em dados, coletados e processados automática e velozmente pelas máquinas.

Mão robótica transmitindo sinais de redes tecnológicas
Mão robótica transmitindo sinais de redes tecnológicas – Foto: Tara Winstead/Pexels

Os autores do artigo da Galáxia definem essa personalização como o alicerce do modo de negócio dos serviços de streaming: “O valor de uma plataforma é avaliado com base na fatia de mercado que ela detém. […] Manter ouvintes conectados, como aponta Seaver (2019), é um objetivo que tende a ser pensado nesse mercado com base em uma perspectiva behaviorista, que enfatiza a captura da atenção”. 

As empresas de música, em sua maioria, não estão ativamente lutando para regularizar tecnologias generativas. O Deezer é a única plataforma de streaming que assinou uma declaração compartilhada por mais de 50 mil indivíduos e organizações, afirmando que “o uso sem licença de trabalhos criativos para treinamento de IA generativa é um perigo para a vivência dos criadores destes trabalhos, e não deve ser permitido”. Neste ano, a empresa lançou uma tecnologia de detecção que ela descreve como inovativa, buscando proteger os direitos de criadores e trazer transparência para seus usuários. Um estudo efetuado pelo Cisac, Confederação Internacional de Autores e Compositores, estima que os músicos estão em risco de perder 24% da sua receita até 2028 como resultado da tecnologia de IA, enquanto as empresas continuam a aumentar seu lucro.

Além do Spotify ter prometido novos filtros contra conteúdo autogerado, Daniel Ek renunciará de sua posição como CEO da empresa em janeiro de 2026. Seu tempo na posição foi caracterizado por críticas constantes a seus comentários sobre o boom de IA ser algo que “pode levar ao crescimento monetário da plataforma” e revoltas contra seu envolvimento em um investimento de 600 bilhões de euros na startup de defesa Helsing, conhecida por sua tecnologia com base na IA. 

Pessoa tocando um violão.
Pessoa tocando um violão. Foto: Jefferson Santos/Unsplash

O lado humano

Mas, afinal, o que se perde com a existência de músicas criadas sem o toque de um artista? A música é considerada uma das mais nobres e importantes formas de expressão artística, cuja manifestação é humana e associada à experiência e à memória coletiva. A relação entre músicos e público é um dos vínculos culturais mais populares no mundo. Quando uma canção é produzida por um modelo algorítmico, sem vivência ou sem intencionalidade, é possível considerá-la arte? Qual é o valor agregado para o ouvinte ao consumir esse tipo de conteúdo? 

A “democratização” da arte é um dos argumentos usados por aqueles que utilizam IA para gerar músicas. Os apoiadores do movimento afirmam que, ao diminuir o conhecimento técnico exigido para compor e gravar uma simples canção, a diversidade criativa na criação cresce. 

De acordo com Paulo Serafim, professor, músico e produtor, o que está em risco no presente não são as faixas tradicionais, mas o mercado musical paralelo. Para ele, o público ainda buscava se conectar emocionalmente com os artistas, mesmo no contexto da internet. Os ouvintes assistiam às performances no YouTube, seguiam no Instagram e liam a Wikipedia. “O que está rapidamente sendo prejudicado pela geração de músicas são coisas mais genéricas, mas também importantes para o trabalho de um compositor. Trilhas para comerciais e podcasts ou aquelas faixas de ‘relaxamento’ que o pessoal coloca de fundo, essas coisas não têm ‘conexão artística’, mas uma parte gigante do mercado gira em torno delas”, lembra. 

Serafim reconhece que já experimentou a IA e vê alguma utilidade nelas. “Mas é aquilo, eles funcionam como todo prompt (de geração artificial). Para quem está perdido, eles podem gerar algumas ideias interessantes, dar um norte. Para quem já sabe o que quer fazer, eles só atrapalham.” 

Possíveis vantagens

A Agenzia entrevistou o vocalista da banda Porcas Borboletas e professor de Língua Portuguesa da Cásper Líbero Danilo Bernardes Teixeira, que possui uma visão favorável ao novo modo de criação musical. “É uma aliada que traz milhares de possibilidades para criação de novos conteúdos e uma facilidade enorme. Não acho que pode ser vista como inimiga, não acho que vai tomar o lugar dos músicos, não acredito nisso”, afirma Danislau TB, seu nome artístico.

No entanto, o artista vê os direitos autorais como campo de preocupação: “Isso realmente é um problema. Sabemos que a IA utiliza de um banco de dados que armazena sons e trilhas para criar novas músicas, mas não sabemos de onde são tirados, não sabemos as fontes. A verdade é que os direitos autorais já são quebrados constantemente, com a IA isso foi muito amplificado.” Uma alternativa proposta seria a regulamentação destes modelos. “Como eu falei, os direitos autorais já são quebrados constantemente. Com uma regulamentação, poderemos saber as fontes e os créditos serão dados a quem realmente merece. O trabalho na música já está difícil, sem uma segurança dos direitos, fica ainda mais complexo.”

Danislau TB afirma que a criação de músicas com IA pode beneficiar o mundo artístico, tornando mais fácil que mais pessoas pratiquem a arte. “A facilidade e o poder que a IA traz é muito grande. São milhares de possibilidades de criação de sons; e quanto mais gente criando, mais conteúdo teremos.” 

Parede com discos de vinil, fitas cassete, CDs, televisões e amplificadores.
Parede com discos de vinil, fitas cassete, CDs, televisões e amplificadores. Foto: Expect Best/Pexels
UTILIZAÇÃO DE IA
Autoria Humana Exclusiva

Este conteúdo não demandou a Inteligência Artificial em etapa alguma do processo jornalístico.

Gabriel Antonucci Mazilio Izidro

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *