Em meio à ofensiva militar israelense e o avanço da ocupação contra o povo palestino, jovens ouvidos pela Agenzia contam os diferentes dilemas pessoais, sociais, políticos e familiares que enfrentam.
Por: Sophie Magri, Carolina Ferreira, Rebecca Briganti, Sabrina Zabatiero e Alan Oliveira.
Desde 7 de outubro de 2023, o cotidiano de jovens palestinos e israelenses tem sido drasticamente impactado pela guerra, mas de forma desigual. Para muitos, a normalidade desapareceu diante da violência, do luto e da instabilidade. “Os dias passaram a andar devagar, como se o tempo tivesse parado num momento de terror. Tudo o que eu conhecia sobre segurança, família e vida se distanciou de mim”, relata Loay Okasha, jovem gazaui de 21 anos.
Assim como Loay, outros jovens ouvidos pela Agenzia relatam os diferentes dilemas pessoais, sociais, políticos e familiares que enfrentam diariamente desde o início de uma das fases mais dramáticas do conflito entre Israel e Palestina.
Naquele sábado, o grupo Hamas — que controla a Faixa de Gaza desde 2007 — lançou um ataque surpresa contra o território israelense, matando centenas de pessoas. A reação de Israel foi imediata e, desde então, os combates não cessaram.
Passado pouco mais de um ano, a guerra já deixou mais de 63 mil mortos e cerca de 127 mil feridos, segundo a emissora Al Jazeera. A grande maioria das vítimas — aproximadamente 98% — é palestina. Do lado israelense, 1.139 pessoas morreram e mais de 8.700 ficaram feridas.
A ofensiva também alterou profundamente a vida de Shani Katz – nome fictício a pedido da entrevistada, que preferiu não ser identificada por motivos de segurança-, israelense de 23 anos. “Ninguém aqui passou ileso. O que mais me incomodou no último ano foi como tudo ficou polarizado. Parece que as pessoas têm que escolher um lado ou outro, sem espaço para nuances”, afirma.
Se para Shani os impactos mais sentidos são de ordem social e política, para Loay, que vive na Faixa de Gaza, a guerra afeta cada aspecto da vida cotidiana — inclusive seus sonhos e perspectivas de futuro. Entre os jovens palestinos, o caminho já parece traçado desde o nascimento. O conflito não é um episódio pontual, mas uma realidade constante, da qual é preciso tentar sobreviver todos os dias.
Para compreender como o atual cenário repercute na vida da juventude palestina e israelense, a reportagem da Agenzia ouviu quatro jovens que vivem na região. O objetivo foi investigar de que forma suas rotinas foram transformadas desde 7 de outubro de 2023.
Mais do que conclusões definitivas, os relatos revelam fragmentos de vidas atravessadas por escolhas difíceis, violências cotidianas e percepções muitas vezes inconciliáveis — um retrato complexo de um conflito que se prolonga há décadas e marca de forma profunda as gerações mais jovens da região.
Cotidiano dos jovens palestinos em Gaza sob o cerco
A vida na Faixa de Gaza é marcada por escassez, medo e destruição. Para Loay Okasha, nascido e criado em Jabalia — uma das áreas mais densamente povoadas do mundo, com 116 mil habitantes em apenas 1,4 quilômetros quadrados — a guerra não é uma exceção: é a regra.
O campo de refugiados onde ele vive, surgiu após a criação do Estado de Israel, em 1948, e a guerra árabe-israelense que forçou milhares de palestinos a abandonarem suas terras.
Hoje, Gaza permanece sob um bloqueio imposto por Israel, enfrentando uma prolongada crise humanitária. Cerca de 95% da água disponível é imprópria para o consumo, e a eletricidade é racionada — a média diária é de apenas oito horas. A insegurança alimentar atinge 62% da população e 80% dos moradores dependem de ajuda humanitária para sobreviver.
Loay descreve uma realidade em que tudo remete à guerra: o medo, as perdas, a espera. “Achava que, ao crescer, escolheria meu próprio caminho. Mas esse caminho nos foi imposto há muito tempo. O conflito não é um evento pontual — é o nosso cotidiano. Nascemos nele e tentamos viver apesar dele.”


de mísseis de Israel. – Foto por Loay Okasha/Agenzia
Colonização e expulsão: o conflito em perspectiva histórica
As raízes desse cenário antecedem o conflito atual. Após a Primeira Guerra Mundial, em 1918, e a dissolução do Império Otomano, em 1922, a Palestina passou a ser administrada pelo Reino Unido. Durante o mandato britânico, houve um intenso fluxo migratório de judeus à região, impulsionado pelo movimento sionista — uma ideologia surgida no fim do século 19 que propunha a criação de um Estado judeu como resposta ao antissemitismo europeu.
Essa proposta, porém, ignorava a presença histórica da população árabe palestina — muçulmana e cristã — que habitava a região havia séculos. Na época, uma narrativa amplamente difundida afirmava que se tratava de “uma terra sem povo para um povo sem terra” — tese desmentida por historiadores como Ilan Pappé, que demonstram que a Palestina otomana era densamente povoada, com economia ativa, estruturas sociais consolidadas e intensa produção cultural.
Em 1947, após a Segunda Guerra Mundial, em 1954, a ONU propôs duas alternativas: a criação de um Estado único, que integraria os colonos judeus, mas barraria a continuidade da colonização sionista (proposta palestina), ou a partilha do território em dois Estados — um judeu e um árabe — apoiada pelos sionistas. A escolha da ONU pela divisão foi rejeitada pelos árabes palestinos e aceita pelos líderes sionistas. O impasse levou à guerra.

perdendo espaço na região. – Foto por Arte/EBC
Entre 1947 e 1949, cerca de 750 mil palestinos foram expulsos por milícias judaicas e, posteriormente, pelo recém-criado Exército israelense. Mais de 500 vilarejos foram destruídos e aproximadamente 15 mil pessoas morreram. O episódio ficou conhecido como Nakba — “catástrofe”, em árabe — e continua sendo uma ferida aberta na memória palestina.
Apesar de muitas vezes retratado como um conflito religioso, o embate entre Israel e Palestina é, essencialmente, político e territorial, moldado por dinâmicas coloniais e nacionalistas do século 20. Judeus viveram por séculos em países árabes, e muitos árabes também eram judeus. O que está em disputa é o controle de um território marcado por promessas não cumpridas, deslocamentos forçados e resistências históricas.
Educação, trabalho e sobrevivência em Gaza
A guerra afeta profundamente o futuro da juventude em Gaza. Cerca de 92,9% das escolas foram danificadas ou destruídas. “Mesmo que alguém obtenha um diploma ou experiência, as oportunidades são escassas, e o mercado está saturado pelo desemprego. As barreiras políticas e econômicas frustram nossos sonhos e nos privam de perspectivas reais”, lamenta Loay.
A farmacêutica Lara Alijamala, palestina de 28 anos, também nascida em Gaza, perdeu o emprego após a última ofensiva militar. “Muitas empresas nem consideram meu currículo por eu ser de Gaza”, relata. Atualmente, trabalha como tradutora e intérprete freelancer em hospitais, além de atuar voluntariamente no cuidado de mais de 55 crianças órfãs.
Tanto Lara quanto Loay passam os dias buscando água, garantindo alimentos e realizando tarefas domésticas que, devido à falta de energia elétrica, levam muito mais tempo. “Lavo roupa à mão e uso uma bacia grande para economizar água. Estamos totalmente sem eletricidade”, conta Lara.

em que ele mora, onde era a casa de seus amigos. – Foto por Loay Okasha/Agenzia

Entre dois mundos: jovens em Gaza e em Israel vivem realidades opostas
Enquanto “viver em Gaza é existir entre escombros, drones e bloqueios”, segundo a pesquisadora Isabela Agostinelli dos Santos (San Tiago Dantas) – a vida em Tel Aviv continua como se não houvesse uma guerra ali a 71,3 km quilômetros.
Shani Katz, israelense de 23 anos, nascida em Modiin — entre Tel Aviv e Jerusalém —, continua seus estudos em sociologia, antropologia e educação na Universidade de Tel Aviv e trabalha como confeiteira em uma cafeteria.
Shani serviu como guia de juventude no Exército, que é obrigatório a partir dos 18 anos em Israel — dois anos para mulheres e três para homens. Ela diz acreditar que o serviço militar oferece oportunidades profissionais e educacionais valiosas. “Se o país precisa de gente na área de tecnologia, o exército te treina para isso. O caminho de muitos jovens gira em torno das necessidades do Estado”, afirma.
“Apesar dos problemas do governo, sinto-me protegida. Sempre vivi em uma cidade segura, mesmo durante os conflitos recentes”, diz Shani. Do lado israelense, a brasileira Abigail Cruz, de 23 anos, também relata o impacto da guerra. Morando em Tel Aviv desde 2016, ela conta: “Não estou acostumada com bombas e sirenes. Sinto muito medo de sofrer um ataque terrorista. A guerra me deixou traumatizada.”
Segundo Abigail, Israel mudou drasticamente após o ataque de 7 de outubro de 2023. “As fotos dos reféns estão espalhadas por toda a cidade. É impossível esquecer que ainda há pessoas sofrendo”, diz ela.
Quando sair é uma escolha quase impossível
Loay já considerou emigrar para buscar paz e novas oportunidades. “A vida aqui é extremamente difícil. Pensar em sair faz sentido, mas é uma escolha dolorosa. A Palestina é nossa terra — impossível de esquecer.”
A saída, no entanto, é limitada e cara. Lara relata que suas irmãs conseguiram deixar Gaza durante a intensificação da guerra, cruzando a fronteira de Rafah com o Egito. Pagaram U$5.000 por adulto e U$2.500 por criança para atravessar, por meio de uma agência egípcia que controlava a passagem.
“Antes da guerra piorar, conseguimos estudar, encontrar amigos, assistir vídeos quando havia internet. Tínhamos uma rotina, ainda que limitada. Agora, tudo isso foi destruído”, diz Loay.


e celulares em Gaza. – Foto por: Loay Okasha/Agenzia
Em Gaza, o lazer virou luxo
A escassez atinge até os momentos de lazer. “Coisas simples como assistir a um filme ou ouvir música tornaram-se impossíveis. Sem eletricidade, tudo fica mais difícil”, relata. Lara complementa: “Antes ainda nos reuníamos com amigos, íamos à praia ou fazíamos piqueniques. Hoje, tudo é sobre sobreviver.”
Ela também destaca os efeitos emocionais da guerra. “Vivemos em alerta constante. Isso afeta nosso bem-estar, nossa criatividade. Às vezes, parece que nem conseguimos pensar em outra coisa.” O lazer virou um luxo em Gaza. “Mesmo pequenos momentos de distração tornaram-se distantes”, finaliza Loay.
Shani, em Israel, continua tendo acesso à educação, internet e entretenimento. “A guerra nos afeta, mas temos infraestrutura. Posso estudar, trabalhar e ver filmes. O Exército nos prepara profissionalmente para o futuro. Aqui, a vida continua.”


Resistência digital em Gaza
Enquanto em Gaza o acesso à internet é precário e marcado por bloqueios, em Israel o ambiente digital funciona como espaço de informação e, muitas vezes, de normalidade em meio ao caos.
Loay relata que, diante do bloqueio informativo imposto pela ocupação e pela destruição da infraestrutura de Gaza, as redes sociais tornaram-se sua principal forma de comunicação com o mundo. “Às vezes, não temos energia para carregar o celular, mas mesmo assim tentamos mostrar o que está acontecendo. Compartilhamos nossa dor e nossa esperança através de fotos e vídeos”, diz.
Para Loay, essa produção digital é uma forma de resistência cultural. Mesmo diante da censura e da instabilidade da conexão, jovens palestinos usam memes, relatos e músicas como meios de expressão. “É o que nos resta. É a forma que encontramos de continuar existindo”, afirma. Recentemente, ele conseguiu organizar uma vaquinha online para arrecadar fundos para sua família. “Tive sorte de conseguir postar a campanha antes de ficarmos sem luz de novo. Muitas pessoas ajudaram, e isso nos deu algum alívio por alguns dias.”
Lara, que também vive em Gaza, reforça que as redes sociais são um espaço para respirar. Ela destaca que, apesar da vigilância e da possibilidade de apagão digital, ainda é possível construir pontes com o mundo. “Postei um vídeo sobre os bombardeios e ele foi removido. Diziam que era conteúdo sensível, mas era apenas a nossa realidade”, conta.
Redes em Israel: entre distração e polarização
Em Israel, a relação com as redes sociais é marcada por maior acesso e estabilidade. Abigail, relata que usa as plataformas para se manter informada e para aliviar a tensão da guerra. “Consigo falar com amigos, ver séries, tentar manter uma rotina. Mas também vejo muito ódio. Recebo mensagens apenas por ser israelense”, comenta.
Shani aponta que o ambiente digital é também um espaço de disputa. “As redes sociais viraram um campo ideológico. Cada lado tenta mostrar sua versão, mas nem sempre queremos ver a realidade do outro.” Ela critica o apagamento das consequências do conflito em Gaza, e reconhece que muitas narrativas reforçam apenas o medo e a autodefesa.
A guerra da desinformação
Tanto em Gaza quanto em Israel, os jovens apontam a desinformação como um dos maiores desafios. Em contextos de guerra, as redes sociais amplificam conteúdos sensacionalistas e dificultam a verificação de fatos. Loay observa que, sem acesso à mídia independente, é difícil saber em quem confiar. Abigail concorda: “Algumas postagens espalham mais medo do que entendimento. Fica tudo muito polarizado”.
Relatórios de organizações internacionais, como a Human Rights Watch, apontam que plataformas como Facebook e Instagram têm censurado sistematicamente conteúdos pró-palestinos. Ao mesmo tempo, jovens israelenses também relatam ataques virtuais e discursos de ódio após ações do Hamas. “A internet potencializa tudo, inclusive o medo. Já vi amigos sendo atacados online apenas por demonstrarem apoio a Israel”, diz Abigail.
Conexão desigual, impacto compartilhado
A desigualdade no acesso à internet revela diferenças profundas nas rotinas dos jovens. Em Gaza, a comunicação digital é inconsistente e arriscada. “A gente arrisca muito para postar um vídeo, mas é a forma de mostrar que estamos vivos”, afirma Loay. Em Tel Aviv, o ambiente digital ainda permite espaços de lazer, distração e informação em tempo real.


Apesar das distâncias e desigualdades, esses jovens usam as redes sociais como ferramenta de sobrevivência, expressão e resistência. Para uns, é uma forma de gritar por socorro. Para outros, é um espaço de busca por normalidade. Em ambos os casos, é também um espelho do conflito e da tentativa de manter alguma humanidade em tempos de guerra.
Ajude a família de Loay e Lara a sobreviver ao genocídio israelense contra o povo palestino
Essa vaquinha é mais do que uma campanha — é um ato de resistência, de esperança e de sobrevivência. Cada doação, por menor que seja, faz diferença.
Acesse e contribua com a vaquinha de Loay e Lara.
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Porque ninguém deveria ter que lutar sozinho para existir.
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Excelente matéria! Sensível e equilibrada, mostra com empatia os desafios e sonhos dos jovens em meio ao conflito, dando voz a realidades muitas vezes esquecidas.
Muito interessante essa matéria. Bem escrita e traz um panorama histórico necessário para uma boa compreensão do conflito.
Muito interessante! Parabéns pelo trabalho!
Extremamente Importante o Tema Abordado na Matéria, esse ultrajante acontecimento que esta ocorrendo pro povo em gaza e essa guerra que é um crime a humanidade, trazer mais a claros isso pra população através da notícias é algo louvável muito boa a materia e bem informada.