A dura realidade de atletas ignorados e suas histórias de superação são motivação para lutas e vitórias dentro e fora de ringue.
Por Giovana Couto, Maria Eduarda Alves, Maria Eduarda Macedo, Maria Eduarda Muniz e Sofia Menezes
Há 8 anos, o jovem Kelvy Alecrim, hoje com 19 anos, tinha acabado de migrar da Bahia e se instalou na favela do Moinho, na região central de São Paulo. Logo na chegada, a atenção do atleta se voltou para um projeto social, o Boxe Autônomo, que oferecia a modalidade para entreter as crianças fora do horário da escola. Ele ficou curioso, fez sua primeira aula e se apaixonou pelo esporte.
Em pouco tempo, Kelvy começou a competir e se juntou ao projeto para dar aulas para a comunidade. Um treinador e tanto e que tem no currículo quatro títulos no campeonato paulista e três no brasileiro. Representou ainda a seleção brasileira. Foi pelo boxe que ele teve a oportunidade de lutar em solo estrangeiro. No mar laranja de casas de tijolo aparente, janelas irregulares, ligações clandestinas nos postes, a história do boxeador inaugurou um ciclo de esperança de mudança e incentivo para outros jovens.
A suada realidade de Kelvy não é exceção. Na verdade, ela se espalha entre jovens atletas de periferias como as de Santa Terezinha e Jardim São Luiz, visitadas pela reportagem. Para eles, a saída é descobrir formas de melhorar as suas performances em seus treinos com os poucos recursos que têm acesso. Nas comunidades, uns ajudam os outros no desenvolvimento de caráter e na melhora da saúde e controle emocional.
O professor Guilherme Silva, de 23 anos, conheceu Kelvy na Boxe Autônomo. Hoje, os dois dão aulas avulsas, mas treinam juntos em outro espaço, a academia Tony Boxe, no bairro Jardim São Luiz, periferia da zona sul de São Paulo. Eles foram convocados, assim como outros atletas periféricos, para participarem da equipe com a promessa de treinarem em alto rendimento e aprimorarem suas técnicas. Antônio Pereira, o Tony, é o fundador do projeto, que ele criou sem ajuda e de forma voluntária.

Foto: Maria Eduarda Lemgruber/Agenzia
A academia fica num lugar pequeno. Muitos treinos têm até de ser realizados na quadra pública. As aulas variam em duração e no número de participantes. O ambiente é suburbano e, ao mesmo tempo, muito convidativo. Enquanto acontecem as aulas, o filho de Tony, Davi Pereira, de quase 2 anos e ainda pouca habilidade de fala, socializa por toda a quadra com o seu brinquedo favorito, um pequeno triciclo, esbanjando toda a simpatia e a humildade herdada do pai. Enquanto isso, o treinador e dono da academia utiliza de um simples, porém eficaz método de ensino. Um apito, luvas, capacete e suas cordas vocais fazem a maior parte das aulas, que vêm trazendo cada vez mais resultado para os atletas.
Impacto Social
Em outra comunidade, na Santa Terezinha, em São Bernardo do Campo, o professor Murillo Siqueira conta como foi sua trajetória: “O boxe está muito relacionado com o que aconteceu na minha juventude. Com 18 anos, eu tive um quadro de depressão e o boxe me ajudou muito a sair dessa vida. Percebi que é uma ferramenta, que eu poderia cuidar de outras pessoas”, relembra. Um colega de profissão, Phil (Felipe), o convidou para atuar e ajudar a iniciar na fundação do projeto Boxe São Bernardo. “Vi uma oportunidade muito grande de ajudar jovens não só da parte física, mas da parte psicológica, parte emocional e talvez outras intervenções na vida e no cotidiano deles.”
Com base nisso, os professores criaram o projeto em 2024, também quase sem nenhuma ajuda, apenas o galpão foi cedido pela prefeitura da cidade. Os equipamentos, galões de água, atendimento médico e manutenção do espaço são custeados pelos próprios professores. “A gente não tem ninguém que banque o projeto, né? É, não recebemos nada, eu ou outro professor. Quando a gente tem uma grana sobrando, a gente faz uma vaquinha, compra o material, compra o galão da água, então a gente faz tudo de coração mesmo”, diz Murillo.
Fellipe Otaviano Ferreira, aluno de 14 anos, comenta: “é um projeto bom, bom e pode melhorar. O professor Felipe está ajudando muito, está fazendo muitas coisas por nós. Já fomos até um evento em São Paulo. Pensando no que melhorar. E não é só porque um lugar tem falta de equipamento que ele é que ele vai ser ruim, não. O lugar pode ter falta de equipamento, mas tem professores bons que podem ajudar você.”

Foto: Maria Eduarda Macedo/Agenzia
Mas o projeto não é apenas sobre a formação física dos jovens atletas. Ele também se dedica ao desenvolvimento do caráter e da disciplina dos participantes. O esporte de luta, além de fortalecer o corpo, trabalha intensamente a mente.
Hygor Henrique conta como o boxe influenciou em sua personalidade: “Eu era uma pessoa explosiva, brigão e não aceitava desaforo de ninguém. Então, o boxe me ajudou muito nessa questão de temperamento”. Já Nicollas Veloso completa: “Esse projeto salva vidas. Podemos dizer assim, porque você pode estar perdido, se encontrar um esporte que pode descontar as coisas ruins que acontecem, é ótimo”.
A campeã paulista da modalidade no ano passado, Maria Júlia Garcia, começou a lutar no projeto Boxe São Bernardo, o que a ajudou na sua parte disciplinar: “Hoje eu penso, por causa do boxe, quando eu tenho determinada dificuldade que apareceu em minha vida, eu falo: não vou desistir disso, vou persistir. Acho que foi a maior lição que o boxe me trouxe”.
O professor Guilherme Silva também fala sobre os benefícios das artes marciais. “A molecada desestressa mais. Eles têm muito problema de estresse por ficarem muito tempo dentro de casa. Eu percebo que, depois de começarem a treinar, eles ficam mais atentos, interessados e dispostos”. E completa: “O boxe abre muitas portas. O atleta que junta alguns campeonatos pode concorrer a uma bolsa de estudos. Se o jovem não quiser seguir na carreira de boxe, ele vai ter a disciplina que foi passada dentro do esporte para seguir em qualquer área da vida dele”.
O tetracampeão estadual Kelvy, da Tony Boxe, fala de sua experiencia pessoal. “O boxe mudou muito a minha vida, tanto em questão financeira quanto pessoal. Eu era uma pessoa muito estressada, hoje eu consigo lidar melhor com meus sentimentos”. Kelvy, com o esporte, sustenta sua família e conseguiu se mudar, com os pais e os irmãos, da comunidade do Moinho para um lugar melhor e mais seguro.
Dificuldades ao longo do caminho
Nenhuma das duas iniciativas esportivas recebe apoio da Federação Paulista de Boxe, tampouco do governo. “Atualmente, não tem ninguém que apoie o projeto financeiramente”, afirma Kelvy, atleta e amigo do fundador da Tony Boxe. Os maiores apoios externos vêm de patrocínios e colaborações com marcas que fornecem materiais para o treino, como luvas e capacete.
Na realidade em que vivem, alimentação, locomoção e saúde física e mental não são necessidades tão básicas dos atletas. Kelvy revela que, para os alunos, a precariedade nesses três itens são os principais motivos para o abandono das aulas. “Tem muita gente que não tem dinheiro para pagar a condução para ir treinar, fora as dificuldades pessoais. Nem todo dia eu vou estar bem para treinar, física eu emocionalmente, e tenho que sempre estar presente. Mas nem todos tem a oportunidade de ter um acompanhamento médico”, diz.
O professor Murillo conta: “Às vezes muitos deles trazem problemas de casa. Problemas pessoais. E eu tenho que saber lidar com eles”. Algo que o jovem Kelvy ressaltou ao caracterizar o esporte como “extremamente individual”: “Ao contrário do futebol, no boxe se luta sozinho. Se você cansar, o adversário te atropela. Por isso, o atleta deve ter uma cabeça forte, passar com um psicólogo, se tiver condições, o que não é o caso para a maioria”.
Entre as principais queixas dos envolvidos estão a falta de estrutura para manter as academias e a ausência de condições mínimas para os atletas treinarem. O tetracampeão estadual Kelvy crítica a pouca visibilidade do boxe no Brasil: “O governo e a mídia não dão para o boxe a mesma atenção que dão para o futebol. Nós merecíamos mais reconhecimento e visibilidade”.
Ao longo das entrevistas, professores de ambas as academias reforçaram a necessidade de mais divulgação e investimento por parte do poder público. Eles apontam que a falta de apoio compromete a continuidade dos projetos e limita o alcance do esporte nas periferias.
“Falta que o poder público realmente abrace a causa. Parece que só há interesse quando há retorno”, diz o professor Guilherme. Murillo completa: “Às vezes, é preciso deixar de pensar só em ganhar e passar a doar mais. É dando que se recebe.”
Relação fora de ringue
Além da ajuda das artes marciais para a formação de caráter desses jovens, os integrantes dessas academias ganharam famílias. “O professor Murilo me dá bons conselhos, que eu fico pensando, repensando, repensando. E isso me ajuda muito nos momentos difíceis”, comenta Guilherme, aluno de 14 anos do projeto.
Kelvy, hoje um atleta de alta performance, cita: “é um senso de comunidade total. Quando você começa a treinar em uma equipe, a equipe vira sua família. Você vai ver eles todo dia, vai treinar com eles. Você tem que aprender a conviver e isso é muito legal do boxe”. A sensação do professor Guilherme não é diferente. Ele se envolve e orienta os mais novos: “a gente também ensina como ser um homem fora dos ringues, prezamos também em passar a disciplina e o respeito.”

Foto: Giovana Couto/Agenzia
Numa rede social da Academia Boxe Autônomo, os professores postaram: “Esporte não é para uma pessoa só, é para ser acessível, aberto e coletivo, sem constrangimento de qualquer tipo”. Além da relação de irmandade nos esportes, as artes marciais baixam as taxas de criminalidade nas periferias, funcionando como instrumento de resgate. “Onde existem programas de apoio ao esporte para crianças e adolescentes observa-se uma queda anual de 30% da criminalidade”, afirma o coordenador da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) no Brasil.